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sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Piolho de cobra

Quase todos os dias, exceto domingos e feriados, atravessava a rodovia, arrastando os fiapos de perna, para almoçar na casa da irmã. O trajeto não era longo, uns dez metros, se muito; mas arrastar-se no asfalto em brasa, rasgando as palmas das mãos, deixava-o em carne viva, e ainda lhe rendera o apelido de piolho de cobra.
Bebia como desesperado e contava histórias da época em que passava correndo por entre os carros. Nas tantas bebedeiras, fisgou do passado os tempos em que, saindo da escola, deu de correr, e correu como nunca, descalço pelo asfalto, pelas piçarras, pelas pedras do calçamento da praça da matriz. Por mais que se permitisse parar, não continha o ímpeto de atravessar cada vez mais avenidas e praças e calçadas, sem olhar para trás, na certeza de que ninguém o alcançaria. Seu nome espalhou-se por toda a região – era o menino que corria sem motivo, um milagre, um desocupado, mas certamente alguém sem medo de desafiar o próprio corpo.
Nas correrias, subiu quase todas as serras das cercanias; as gentes das praças por onde passava aplaudiam, todos encantados com o feito do menino pé-de-vento, que não parava de correr, nem para comer ou dormir. Muitos tentavam segui-lo, esticando o passo para não perdê-lo de vista; entanto, os mais resistentes não passavam mais de um dia em romaria, vez que, sabendo que o seguiam, apertava o passo, em vermelhidão, moído de sangue, sem unhas. Quando não houve mais para onde ir, decidiu voltar, andando, que os pés já não respondiam.
Depois do feito, as pernas deixaram de responder. Foram afinando, dando saliência aos joelhos, encolhendo, até que se tornaram flácidas, amareladas. Passou então a rastejar pelo mundo, sempre com trajeto marcado, indo de um lado a outro da avenida para almoçar na casa da irmã. Aprendeu a viver assim, usando os braços para arrastar o corpo seco, de costelas à mostra e pernas que mais lembram tentáculos.
Sempre que bebe, atravessa a rodovia sem dar noção às máquinas que por ali passam, rasgando o tempo. De nada adianta, todos os carros e caminhões param para ver piolho de cobra. Alguns jogam moedas, que costuma juntar para ter com as mulheres do baixio.

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