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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Crônica a perder-se no tempo



          Em outras ditas, perceberia o tempo como uma injeção mal aplicada na veia. Um inchaço, uma gangrena. Chegava a ouvir as desditas das horas, ter com os ponteiros intermináveis conversas, muitas vezes noturnas, campeadas por lâminas afiadíssimas e persistentes delicadamente postas sobre a pele. Os dias irradiavam uns longes de esperança que incomodavam, e tudo que restava das páginas rotas do calendário era uma solene presença do que não se viveu. 
           Ainda assim, pelas conveniências dos instantes, confortava-me a ideia da antecipação, de poder, paulatinamente, estrangular a fonte de todas as dores. Por essa convicção, dei-me ao trágico e descobri na fumaça lenta dos cigarros a inspiração que me faltava para encarar os dias da maneira mais covarde possível. Entanto, nesse bordado às avessas, criava as mais falsas circunstâncias de amparo, o que, de certa maneira, devolvia-me algum prazer. Se os tantos anos aspergindo as sabe-lá-quantas substâncias tóxicas do cigarro abreviariam abruptamente o porvir, os momentos mais pungentes da criação nasceriam desse sfumato. Palavras e mais palavras escorreram pela lividez das virtualidades, que algo havia por escrever, embora nem sempre houvesse necessariamente algo a ser dito. O véu alvacento dos fumos descortinava-se à frente, revelando certa aspiração de valentia que, na verdade, não passava de algo como desamparo. Sobreveio uma sensação de brevidade, uma crença de que minha existência estaria limitada aos quarenta anos. Os vícios, pois, aproveitaram-se dessa desesperança e fizeram de mim colmeia. O tempo, por demais curto, cobraria as dores da inexperiência, perpetuaria em meu desânimo as flores amarelas do irrealizável, tornaria os ossos frágeis e a respiração ofegante de cansaço.
            Ironicamente, esse mesmo tempo, arraigado no pleno exercício do esquecimento, é o que me impele a esses devaneios. Em vez de tratá-lo como simples período de duração das coisas, posso tê-lo em outras acepções, como a que é empregada pelos que plantam e colhem, pelos criadores de animais, os que preveem o amadurecimento da vinha, o cio dos vacas. Nesse sentido, o tempo é comensal, oportuno sem ser oportunista. Agrada-me a comparação com a fruta de vez, suculenta e adocicada, à espera de ser devorada. Apesar das intempéries, o que é da estação irrompe, eclode por ser de sua natureza partir a casca, transpor o envoltório. Decerto, nem todo fruto torna-se alimento. Alguns se perdem no limbo, enlameiam-se pelas veredas, tornam à terra e enriquecem o solo. Ainda assim, nesse pensamento, cumprem sua sina de vida. Nem todo ser que rebenta resiste ao caos da existência. Entanto, seu corpo alimentará outros bichos ou servirá de húmus. Esse é o tempo que me apetece.
             Há exatamente um ano, fiz as pazes com o tempo. As horas, outrora lancinantes, sentaram comigo à beira do abismo e, da maneira mais afável, deram-me de ombros, como se esperassem em troca um agradecimento ou, ao menos, uma cortesia. Foi neste tempo de borrasca e calmaria que reconheci Maria, que me veio sem relógio, cingida pela voracidade dos que apreciam as coisas mais simples que o mundo pode oferecer. Em um ano, amei, noivei, casei. Como estivesse escrito, os passos seguiram rumos tão naturais quanto os de uma fruta temporã. Pela primeira vez, a cancela do futuro se abriria, e as Parcas, irmãs fiandeiras, zelariam pelo novelo que me determina o destino. Há um ano, decidimos caminhar lado a lado. Certa vez, Maria me disse que o importante é ter um ao outro, em seja qual for o lugar. Como aprendo com Maria! E o tempo, a despeito da ferocidade, amansou-se. Há um ano, graças à Maria, o tempo me presentou com o amor que sempre quis ter. Há um ano, Maria docilizou o tempo.  

Um comentário:

  1. Sinval,
    que incrível declaração de sobrevivência ao deleite do amor.
    Vejo que sua Maria não te trouxe calma; trouxe incômodo, formigamento e coragem para seguir adocicando os punhados do tempo.

    Fui educanda sua e a melancolia que trazia no olhar anunciava o que estava por vim, uma Maria cheia de tempo, de aprendizagens.


    Felicidades para o casal, que suas mãos sejam a leveza do companheirismo.

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