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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O abraço imprevisível



        Minha relação com a vida é, ao menos em boa parte das horas, um tanto desastrada. Diferentemente de outros por aí, costumo seguir pela antiderrapância das calçadas baixas e recém-capeadas, perscrutando com a ponta de uma bengala imaginária cada centímetro possível para não encontrar surpresas no caminho. Entanto - talvez por ordem desse apuro excessivo - nessas viagens aparentemente seguras, é inevitável que o imprevisível irrompa. Aliás, não menos pelas vezes de um bom jogo de palavras, nada mais previsível que essa inevitabilidade.
       Uma das vezes em que experimentei essa ruptura foi no mais corriqueiro dos acasos. Era começo de tarde, e o cenário, uma rodoviária: o entra-e-sai de sempre, bagagens amontoadas, crianças correndo, outras chorando alto. Uma rodoviária.     
       Ao pino do calor, eu aguardava a condução que me presentearia com infindáveis quatro horas de viagem. Chegava a duvidar do relógio, que insistia em apenas dez minutos de atraso do ônibus. Impaciente, começava a ser tomado pela sensação de que não deveria estar ali, de que alguma coisa poderia dar errado - tantos acidentes noticiados! sei não, mas, se pudesse escolher, não gostaria de morrer assim, num ônibus de viagem, uma batida violenta, um incêndio, uma capotagem, ninguém escapa! morte coletiva! parece casamento coletivo, perde a solenidade, vira algo impessoal, um número: não se pergunta quem morreu, mas quantos!
       Então, de alguma verdade ainda não dita, ele apareceu. Um homem apenas, pedindo trocados a um e a outro, entornado em muletas, arrastando-se entre os que por ali, assim como eu, esperavam impacientemente. Até aí, nada de se registrar, mais um desafortunado tentando a sorte com a boa vontade alheia. Mas ele não pedia apenas. Ele contava sua história. A voz quase não saía, mas aproximava-se o quanto seu interlocutor permitisse para poder se comunicar, mostrar suas feridas, algum receituário médico, caixas de remédio.
       Entre as gesticulações e a afecção da  voz, alguma coisa se entendia. Era filho de qualquer cidade interiorana, tinha fome, apanhava dos seus pares, sentia-se mal, dormia pelas sarjetas, não bebia. 
       Muito mais do que um trocado que fosse, ele queria mesmo era conversar. O problema é que ninguém se propunha ouvir. Dar uma moeda, uma cédula de pouca monta, tudo bem! agora, disponibilizar tempo, ter atenção a uma criatura que não passa por invisível pela ousadia de insistir em contar sua vida, isso já é demais!
         Mulheres torciam o rosto, como num entojo. Pareciam incomodadas com o cheiro. Não o que se capta pelas narinas, mas o que é despertado pelo que se vê, ou melhor, pelo modo como se compreende o que é visto. Não seria, pois, o odor, mas o que aquele homem representava naquele instante. Era o fartum da miséria, que interrompia as conversas, mudava os assuntos, desviava rotas! uma miséria que solicitava atenções, que registrava sua origem, que relatava seus sofrimentos!
          Homens não desertavam de seus lugares. Irritadiços, mantinham-se firmes, fingiam ter atenção, despejavam trocados. Repeliam com veemência qualquer insistência. Se recebeu moeda, o que mais quer? o que mais pretende com esse palavreado todo? 
         Foi quando o pobre homem, já despejado pela maioria, estancou nas muletas por uns minutos. Tirou o boné e o suor da testa. Inevitavelmente, amunhecou. 
        Mas o imprevisível veio e tinha bigode. Chegou-se manso, sem sustos iniciais. Estirou a mão, não para dar moedas. Queria mais. Ouviu atentamente as histórias do outro, acompanhou-lhe os gestos longos, vasculhou-lhe as feridas. Tudo isso sem ares de surpresa. Por fim, com o ônibus já na plataforma de embarque, aproximou-se do senhor de muletas e abraçou-o sem pressa. A partir dali, eles não mais pertenciam àquele lugar. Eles se pertenciam.
         Não se poderia prever esse abraço, como não se prevê a forma que a nuvem vai nos trazer daqui a alguns minutos ou os desenhos que a água da chuva deixa ao escorrer pela parede do quintal. O certo é que, para essas imagens existirem, tem-se que acreditar nelas, buscá-las, imprimir a elas um necessário toque de realidade. Assim também deve ser feito com os que nos estendem as mãos. Às vezes - apenas às vezes - é preciso romper a casca etérea dos planos distantes, das pretensões vagas, dos sonhos e vestir-se do alheio, sem distanciamentos acadêmicos ou compaixões monásticas. Talvez, ao mundo, um abraço baste para iniciar uma revolução.
               

             

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