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quinta-feira, 31 de julho de 2014

estranheza

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas as minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
Hilda Hilst 


         cultivo algumas familiaridades com o tempo,
         dou-lhe de beber e, quando sobra, de comer,
         deixo-o teso, ereto como num primeiro abraço,
         finjo não tê-lo, importar-me, reportar-me,
         traduzo-o em saliva, em cheiro acre,
         virginal, adenso-o.

         minha parede não suportaria um Van Gogh,
         minha fibrose septal prefere o desvelo de ser
         uma cicatriz em forma de estrela
         do lado esquerdo do coração,

         minha biblioteca é módica, de papel apenas,
         os filmes que coleciono não são cult, mal sei deles,
         senão os poucos trechos arremedados na memória,

         minhas mãos não são grandes o suficiente 
         ao ponto de fazer a menina levada dormir,

         não sei dos teóricos, nem eles de mim,
         meus triglicerídeos estão em pleno sangradouro,
         meus músculos faltosos rejeitam exercícios,
         nunca senti o peso de uma arma de fogo,

         minhas pernas não se enrijecem por nada,
         nunca entrei num avião ou num trem,
         não sei mais dos livros que o suficiente,

         deixo a quem queira a tarefa de escolher nomes
         para os que ainda não os têm
         por não terem ainda chegado,

         não saberia me comportar em bistrôs, num petit déjeuner  
         ou dîner,
         meu paladar é excessivamente pífio, piegas,
         não me acomodo em grifes,

         minha sobrancelha de nada vale que me imprima ares de coerência,
         nunca errei suficientemente ao ponto de ser  perdoado por vezes a fio,
         sustento mimos do presente, 
         do passado, apenas colesterol em demasia,

         se vou, não mais volto, que não resguardo voltas,
         não curvo o joelho por formalidade,
         à distância, minhas falhas ampliam-se,

         costumo perder sonhos, exceto o que me traz a imagem
         da mulher feliz ao lado de quem ela, por disposição, amou,

         sinto imensa falta do torpor, do cansaço morno dos bares,
         da fumaça que, por me queimar, me salvava,

         não procuro a fonte das palavras,
         que, para mim, as origens corrompem-se na busca,

         ninguém mudou a vida por minha causa,
         não me encolho por amor ou raiva,
         não ensinei nada verdadeiramente inesquecível a ninguém,
         tenho medos também, meu tempo sempre foi agora,
       
         acredito, tolamente, estar na palavra o motivo de todas as ações,

         nunca me aceitaram os defeitos ou me relevaram os erros,

         sou tedioso como o tempo
         que segue em passos desastrados:
         vez em quando a hora suplica um afago,
         ainda que por fingimento.
         

Um comentário:

  1. "ninguém mudou a vida por minha causa,
    não me encolho por amor ou raiva,
    não ensinei nada verdadeiramente inesquecível a ninguém,
    tenho medos também, meu tempo sempre foi agora,"


    sem ar depois de tuas palavras me encontrarem nessa noite esquecida de agosto.

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