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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Sob o olhar atento das baleias




         Seus olhos são lindos. A palavra, quando dita, deixa de ser sã, perde o apuro, a pureza do literal. O que é de dizer finca-se no tempo e, depois de dito, aninha-se na memória e pia de bico aberto, à espera do resgate oportuno, e a criação reside nesse ato. Ao dizer dos olhos, outra coisa irrompe, algo que não se esperava por ser aprumado demais, um lastro tão desalmado, tão insistentemente engodado no desejo, que faz dos olhos o que não são: olhos. 
           E o olhos estavam lindos no dia de sua primeira comunhão. De vestidinho branco, motivos em flor, ombros curvos à mostra, segurando sem firmeza, na ânsia de esconder o rosto, o livreto de cânticos. A boca mexia-se por obrigação, orientando-se pelos movimentos das menininhas que a ladeavam. Eu estava lá. Manhãzinha cedo, pequena demais para entender, enquanto tentava abrir a porta corrediça da loja, sentiu a aspereza das mãos enojantes do bêbado conspurcando-lhe a inocência. Eu estava lá e nada fiz. Quando o primeiro namorado prometeu-lhe o impossível, sabendo-se resistente a tudo, menos à verdade, mal contive o ciúme. Durante a viagem à capital, obrigada a envelhecer dez anos, longe da avó que a criara, próxima demais da cidade que se distanciava, continha lágrimas e prenunciava uma força descomunal. Na cadeira ao lado, o homem de chapéu era eu. No colégio, sentada como se empoleirasse os ponteiros em seu colo, devidamente alijada na primeira fileira do lado esquerdo da sala, desviava-se dos olhares céticos de sua presença. O professor curvado e magro a contracenar com ela era eu. Na volta para casa, diante da imensidão da avenida movimentada, sem saber como passar pelos cardumes de automóveis, alguém decidiu estender-lhe a mão para ajudá-la a atravessar. Em um dos carros que passava, eu apenas observava com ternura.  
          Outras sucederam, e os olhos continuaram. As cenas que velei emolduraram-se nesses olhos, que são avistamento de baleias, essas gigantescas criaturas, suaves como a própria paz, que passam raspando os catamarãs e miram, quase em reverência, os rostos dos que, a partir daquele momento, aceitarão da forma mais encantatória a própria pequenez. Velei, feito anjo, cada envergar desses olhos, que estive presente em todos os instantes - as birras de fome, os livros da estante do avô, os cavalos reais e imaginários, o único beijo no escuro do cinema, o avião pressurizado e congelante, o passeio de charrete, o amigo insistente a tornar-se amante. Estive, por crença, em todos as moradas, nos silêncios e nas palavras sincopadas dos primeiros seminários na faculdade. Abri mão das asas para que os olhos de sempre permanecessem etéreos. 
        Olhos de bom-senso não creriam em anjos. Entanto, por essa mesma racionalidade, é possível compreender. O acaso diz dessa verdade. Vez em quando, mesmo em risco, procurar notícias. Marcar datas. Guardar frases. Perdoar. Eu estava lá. Mas anjos surgem, revolucionam e partem. Eu pretendo ficar. 
       As baleias embalançam as águas, agitam os barcos. Assim são seus olhos, que reagem aos pensamentos, que se curvam em oração, que latejam por mudanças. A criança que viaja do solo aos ombros do pai são seus olhos. O balanço de pneu no quintal são seus olhos. Quando reouver as asas, poderei partir, não sem antes ensiná-la a voar. Dessa forma, se desejar, poderá seguir comigo pelas vidas que anseiam mudanças, para que todos se curem nas promessas desses olhos. É que seus olhos são lindos. 

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