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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

três


O dono do bar.
Apesar do bom movimento da noite, inquietava-se. Derramava-se sobre o balcão, franzia a testa, gesticulava. Havia nele uma notada impaciência. Dois homens. Repetia em pensamento a palavra homem. Logo no seu estabelecimento, um lugar de respeito, de bons freqüentadores. Dois homens. Quem imaginaria uma cena assim há uns dez ou vinte anos. Apedrejamento na certa. As coisas mudaram. Quebraria a cara dos dois se pudesse. Criara os filhos para um mundo assim? Arrependeu-se da paternidade por um segundo, mas logo voltou a si. Ser pai, uma dádiva. Poder educar os filhos para não se tornarem depravados. E essas coisas, logo à frente, acariciando-se como se fosse normal, como se realmente enxergassem no outro uma possibilidade de prazer lícito, sem os vícios dos olhares alheios. Não teriam pai. São desses que se criam largados, à mercê do mundo, sem religião, sem Deus, sem nada. Decidiu tomar uma atitude – chamaria um deles, pediria educadamente que se retirassem do local. Mirou o magro de óculos. Falaria a verdade, era o dono. Só ficaria ali quem merecesse respeito. O bilhete de um cliente: não agüentava mais aqueles dois se esfregando, que se tomassem providências imediatas e, se possível, exemplares, para nunca mais voltarem. Exemplares. Expulsá-los a socos, talvez fosse exemplar. Não. É preciso ter cuidado para lidar com gente assim, sabe-se lá do que são capazes, tocam fogo em tudo, andam sempre armados. Melhor agir com cautela.
O magro de óculos.
Comparou os olhos do companheiro à negritude da noite. Piegas. Diria qualquer coisa que encantasse. Costumava conversar pouco, mas depois de alguns uísques tornava-se poeta. O outro era jovem, amorenado, rijo, um ar de menino entorpecido. Ternura não havia naquele momento. Pura volúpia, um sôfrego impulso de posse. O menino amorenado era a descoberta do mundo. Tivera outras relações, mas aquela sobrepujava toda forma de pudor. Lembraria estar em um lugar cheio de gente, todos lhe apontando o dedo na cara, uns por puritanismo, outros por inveja. Seu lugar era definitivamente ali, ao lado do amado. Beijá-lo seria uma questão de tempo. Preferia adiar, incitar cada impulso, cada ímpeto. Era preciso recostar-se, pedir outra dose, recomeçar o jogo. Definitivamente um jogo, não passaria disso. O outro, com cara de menino, ocultava indecências, mostrava-se frágil diante de tudo, e isso excitava. O mistério estava nele; desvendaria, mas aos poucos. Abastecia-se de surpresas – só continuaria a jornada pela certeza de que, mais à frente, nada seria igual. Outra surpresa, e mais outra e outra. Beijá-lo agora, torná-lo mais um, seria uma imprudência. Mordia o lábio inferior, sugeria carícias, tocava-lhe o sexo. Não o faria sofrer. Tinha de ensinar-lhe. Um garoto. Talvez quisesse sair dali, voltar para a casa dos pais, esquecer que um dia foi capaz de atrair-se por outro homem. As dúvidas, como sobreviver sem elas, como coexistir sem a desconfiança, como suportar o peso de mil certezas... Ao mínimo sinal de dor, rasgaria os pulsos. Estava ali para qualquer um ver.
O menino amorenado.
Lembrou-se de um antigo professor de História. Um homem inteligente, sem dúvida, sensível às dores do mundo. Foi ele que um dia, na hora do recreio, aproximou-se e disse: você é mais do que imagina ser. Jamais acreditou naquelas palavras, que penetraram cegas, disformes. Nunca haviam lhe falado, com tanta veemência, sobre o que de fato lhe restaria do mundo. E o que viria a partir disso não mereceria aplauso. Engana-se quem pensa que aquela frase, uma simples frase, conseguiu transformá-lo de alguma maneira. As palavras do professor serviam-lhe de consolo; melhor se dissesse: somos iguais, vem comigo, eu te protejo dos perigos da vida. Mas não, isentou-se de responsabilidade. Viva, seja como for, foi o que ele disse, viva... mas como? O magro de óculos tomava-lhe a frente, oscilante, estava bêbado. Queria estar com o professor, porém já não o via há tempos. Não é que sentisse atração por homens. Procurava apenas um, aquele que, na hora do recreio, rasgou-lhe os véus, permitiu-lhe um mundo novo. Pensou em sair dali, notou a insatisfação do dono do bar. O magro de óculos segurava-lhe o braço, implorava atenção, escanchava-se na mesa. Incomodou-se. Pensou em ir ao banheiro, sentiu vergonha, teria que passar pelo dono do bar. Cada vez mais se enojava de tudo. Não pertencia àquele mundo, jamais se entregaria àquela figura esquálida que fingia ser o remédio para todos os males. Desviava o rosto como se procurasse algo. Havia certa aflição em seus gestos, mas era acima de tudo um resignado. Pensou jamais reencontrar o professor de História que, com uma frase, arrancou-o da cruz. Buscava os pedaços, os restos. Em um, encontrava o amparo; noutro, a luxúria; em mais outro, a credulidade. Arrancou um beijo do companheiro. Levantou-se, foi ao banheiro.

6 comentários:

  1. Muito bom, Sinval! Vc consegue expressar muito bem a inqueitude da alma do homem, e ao vê-lo passo a enxergar e a refletir as inquietudes dentro de mim...

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  2. Excelente descrição das sensações humanas e das confusões humanas.
    Suas palavras prendem meus olhos à elas.

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  3. Muito bom Professor!
    Gostaria de saber, se o senhor pretende lançar um livro e caso isso aconteça, se esses contos que o senhor posta no blog farão parte deste?

    Carlos Henrique, seu ex-aluno do Colégio Cientista

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Ainda chego ao seu nível... Parabéns professor, você é um mestre mesmo!

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