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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

um homem só


Tinha medo. Sentou-se apreensivo à mesa, cercado de casais que o deixavam sem graça. Admitia certa inquietação, um incômodo. Como sentisse que algo faltava, punha a mão no bolso a toda hora. Ria, era a melhor forma de defender-se. Ria de tudo. O garçom atrasou o pedido, ria. O rapaz escorregou no corredor, ria. A criança ao lado vomitou, ria. Não havia outra maneira de mostrar-se aquietado. Mesmo assim, quase não era notado. Com paciência, velava cada um dos que se sentavam ao seu lado. Todos estranhos. Conhecia alguns desde criança. Não passavam de estranhos. O mais jovem era um imbecil. Vangloriava-se, na frente da namorada, das mulheres com quem trepara. A coitada era uma porta. Quase sempre concordava com as barbaridades. Vez ou outra é que desviava o olhar, escolhia algo no cardápio, disfarçava. Os outros eram ancestrais: simplesmente se aceitavam. Não destoavam em nada. Os movimentos indicavam a familiaridade peculiar dos que sabem como se ignorar. Depois de certo tempo, adquire-se tal capacidade, uma espécie de invisibilidade, ou miopia, ou cegueira.
Antípodas, as mulheres formavam seu grupo na outra extremidade da mesa. Tantas eram as frugalidades, que não valeria a pena comentá-las. Basicamente palestravam sobre os respectivos companheiros. Que o meu não me dava atenção, que o meu passou a fazer hora extra, que o meu é um leão na cama. Não eram capazes de ser francas. Que eu não suporto mais ser vista como uma haste, um ser estéril, um vão, por isso darei agora meu grito de liberdade, serei a primeira mulher do mundo a dar um basta nessa apoplexia consentida, e não levarei resignações, cansei de ser romanesca, não nasci para resignar-me. Qual não seria a surpresa dos homens ao verem suas fêmeas despindo-se no salão, trocando afagos entre si, desligando-se de cada um deles da forma mais cruel possível. Isso jamais aconteceria. Ria. Imaginava a cena em vários ângulos. Como o pizzaiolo reagiria? O gordo calvo da mesa ao lado? As senhoras distintas de depois da missa?
Os homens, sempre oscilantes em suas palavras, vomitavam desafetos, escorregavam leves nas cadeiras, balbuciando palavras de ordem em prol da ubiqüidade masculina. Terminavam quase sempre em uma estridente gargalhada. Um deles, conhecido desde molecote por sua avidez no trato com as mulheres, simulava, com o dedo à altura do cotovelo, o tamanho de seu membro. Orgulhava-se da vez em que uma de suas tantas namoradas recusou-se ao coito por conta disso. Achei a esposa certa, dizia, enquanto apontava para a mulher e repetia no antebraço o gesto fálico. A pobre apercebia-se de tudo, e sorria um sorriso entre a languidez e a humildade.
Uma delas calava-se. Apertava o laço na cabeça da filha. Uma íntima revolta retorcia-lhe a face. Olhava para os lados, reclamava da demora, procurava o banheiro. Era a única com coragem suficiente para interromper a conversa masculina. A única com sentimentos de autodefesa. Impunha-se por revelar todas as suas incapacidades. Não tinha medo de saber-se indefesa diante de tudo que ouvia, e aquilo apequenava o marido. Sentia-se justa, estava certa em não reagir. Sabia demonstrar na hora exata que a consciência de sua fragilidade era uma insubmissão. As outras não passavam de fantoches, cingidas de conformismo. Essa buscava algo, mesmo sem desviar-se dos cabelos da filha. Deixava-se abater, digna, qual samurai derrotado. Cortavam-lhe a cabeça e não lhe tiravam da face o desconforto diante da pequenez do mundo. Em seu olhar, não se notava respeito, senão uma espécie de tolerância, uma permissividade.
Se todas se despissem... Já não estariam nuas? Ria. Sua presença ali era dispensável, o único que não estava acompanhado.

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