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sábado, 15 de agosto de 2009

Texto para a visita da Morte...

Noite alta. Chuva fina de enregelar qualquer tentativa de sono, cigarro para fumar entupindo a sala de remorso, uísque pelos seus dois dedos de vontade. A isso, junte-se o desejo de dizer coisa com coisa, de espernear nas verdades alheias. Presto, um momento niilista e surreal, a despeito dos que se metem a físicos.
Num cruzar de pernas ou no meio alívio de um suspiro, chegou-se, indiscreta como em todos os tempos, irreconhecível por evitar carícias vazias. Branca, trajando um véu tênue, fitou-me com transparência, como se enxergasse as dores do mundo em meus olhos. Com um leve balançar de cabeça, tornou-se dona de tudo que eu tinha. Sentou-se, que a cadeira, àquela altura, já lhe pertencia. Fitou-me com aflição, dedos entrelaçados, pousados estrategicamente junto ao queixo. Olhos atentos, sublinhados, riscados de serenidade, num quase carinho que me fazia rir, tal o paradoxo.
- Que passa?
O cigarro acabara. O tempo, que sempre se negava, corria para trás – não reporto ao relógio, há muito derretido, mas à sensação de que os ossos enrijeciam, os cabelos retornavam ao saudoso posto, os dentes reembranqueciam, as coisas estranhamente tornavam-se mais simples, sem pagas ou cobranças.
- O de sempre.
Mostrou-me os dentes, esfregou o nariz, tateou o criado-mudo à cata de um cigarro, que em afronta pousou na boca, como se dali jamais houvesse despregado. Esticou as sobrancelhas, esperando de mim o gesto involuntário do sacar o fogo, coisa que só fumante profissional entende.
- Eis.
- Grata.
- Que pretende?
- Visita.
- Breve?
Riu. Seu ramo não lida com brevidades. De tanto chegar, não me causava espanto, ao contrário, dava-me sono. Temia por não temê-la, por sentir, de alguma forma, o calor de sua intimidade, que insurgia contra aquilo que a mim impunha um ar de soberba ou solenidade. Sequer seu corpo frio, cuja essência erguia-se histórica, acrescentava algo àquele momento. Mesmo sua pele enrugada, encaroçando as paredes, fazendo escorrer na poltrona um fétido odor esverdeado, tecendo pelo olhar o frêmito de todos os que, por ingenuidade, tentaram fugir dela, mesmo isso não me tirava a certeza de que, diante de mim, aquele ser feérico ancestralizava-se.
- Chegou a hora?
- Chegou a hora.
- Chegou...
Assim, às três da manhã, cumpri minha sina, entrelaçado àquela que, ainda no ventre, apadrinhou-me.
- Posso ao menos beijar meu filho?
Riu. Nunca compreendera sentimentalidades. Amara uma única vez, mas foi obrigada a desacreditar, atraiçoada pelo próprio ofício.
- Não? Ao menos posso terminar o cigarro?
Há muito o cigarro não existia. Ela nunca me interrompeu, não seria agora. Acendi o toco, duas ou três baforadas, e fim. Senti-me só pela última vez.
- Pronto?
- Pronto.
- Para onde vamos?

2 comentários:

  1. Esperei esse conto por dezoito anos. -sorriso-

    triste pensar q ela vem nos buscar assim... bom seria se ela estivesse linda num vestido preto e te deixasse beijar os seus... tsc, pelo menos ela vem...

    Para onde vamos?


    *S

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  2. Sinval...o que eu posso dizer!!!!
    Voce é fascinante...


    Lilian Cardoso

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