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sábado, 15 de agosto de 2009

Restos de tempo


Num dos calçadões mais movimentados, uma pessoa estanca. Todo um fluxo de gentes, todo o comércio local, todas as pressas, nada impele a vontade súbita de parar no meio do movimento, entre pacotes e compromissos inadiáveis – um gesto involuntário, inusitado, que não se espera que aconteça durante a sonâmbula coreografia dos milhares que se espremem nas calçadas de um centro de cidade no horário comercial. Entanto, aquele ser ousa fazê-lo, desafia o ritmo frenético do quase meio-dia, descarregando seu olhar sobre os estranhos, reconhecendo-os, amando-os, devolvendo a eles o paradoxo necessário, numa afronta heróica, um compromisso com os que, no íntimo, ousariam o mesmo, se não estivessem mortos.
Do outro lado, um garoto de traços impressentidos, escolhido entre os milhares, corpo azulado da quentura, delineia-se pelo olhar do outro, que àquela altura se entrega à doçura do menino, de mesma alma tentacular. O reflexo dos óculos, a cada breve insinuação, clareia o rosto do pequeno, estatelado no mesmo ângulo de calçada, admirando a atitude daquele que, por indolência, desencadeara o mais preciso de todos os processos de desumanização. Uma vez mais experimenta o carinho estatutário dos minutos que precedem a concepção. A sensação de zelo, nutrida pelo olhar de um ser posto imóvel a observá-lo, trazia-o de volta a uma espécie de ventre, instante morno de uma euforia única, enquanto se sabe ou se quer observado, redesenhado pelas vistas atentas de, até pouco tempo, um simples passante, um insano que havia encontrado um mecanismo singelo para a mais abominável das afrontas, um ser que simplesmente decide, menos por anarquia que por imprecisão, mudar o destino de todos os homens.
Na calçada, uma revolução segue – de um lado, um ser alheio às indiferenças torna-se par de todas as coisas; de outro, um garoto resguarda as dores dos que por ali se esbarram. Assim, ser e coisa se fundem, e a lama respinga no rosto do menino, sempre de gestos filiais, desses que se reconhecem por instinto, sem amabilidades nem dramas. A calçada percorre-lhe o corpo, e as pessoas passam por ele, atravessam-lhe a carne, desfazem-no em milhares de passos que, no ir e vir, se tornam movediços. Por certo, não haveria motivos para outro contato, que não o da cumplicidade, o da revelação – princípio de todos os gozos. No temporão das horas, a certeza de que, em outro lugar, com outros igualmente estranhos entre si, a mesma prece se instalava, dividindo o mundo, interrompendo tudo que foi estabelecido para dar ao homem o necessário.
Em súbito, o telefone celular vibra no bolso.
- Alô!
- Pai?
- Diga, filho!
- Não esquece o gibi que prometeu!
- Pode deixar, já comprei...
- Já está vindo?
- Agora.
- Então, até já.
O garoto já não está mais lá. Em tempo, a mansidão das seis horas.

Um comentário:

  1. "(...)aquele ser ousa fazê-lo, desafia o ritmo frenético do quase meio-dia, descarregando seu olhar sobre os estranhos, reconhecendo-os, amando-os, devolvendo a eles o paradoxo necessário, numa afronta heróica, um compromisso com os que, no íntimo, ousariam o mesmo, se não estivessem mortos."

    "um ser que simplesmente decide, menos por anarquia que por imprecisão, mudar o destino de todos os homens."

    "se reconhecem por instinto, sem amabilidades nem dramas. A calçada percorre-lhe o corpo, e as pessoas passam por ele, atravessam-lhe a carne, desfazem-no em milhares de passos que, no ir e vir, se tornam movediços."


    Tudo. É uma das melhores coisas que já li.

    Ler-te... faz bem, não porque nada disso é brilhante, mas porque há um reflexo: "um compromisso com os que, no íntimo, ousariam o mesmo, se não estivessem mortos."
    É bom nunca esquecer...


    *S

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