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sábado, 15 de agosto de 2009

A meu pai, ainda presente...



Cansei de ter lembranças, e quanto mais fujo desses tormentos, mais afundo no movediço das recordações, muitas vezes inúteis, outras tantas dolorosas. Em outros tempos, sou menino a esperar o pai, final de tarde: o que para todos é derradeiro para mim é alvorada. Pontualíssimo, discreto, sorridente, trazendo o envelope humilde e amarelo debaixo do braço. Três batidas no sapato, como num balé rotineiro, antes de entrar em casa. Teu pai chegou, diz mamãe, sempre apreensiva com o jantar. Olhamos juntos em todas as direções, sabemo-nos longínquos, eqüidistantes, antípodas de nossas almas, mas ligados de alguma forma, abrigados pelo mais banal dos gestos, pela mais inconstante sensação de imortalidade.
Entre os detalhes de seu ritual diário, recordo o arrastar das chinelas, a calça cinza de bainha solta, o rádio de pilha sempre ao pé do ouvido, as notícias simplórias da labuta, transformadas habilmente na mais gloriosa das epopéias, de invejar Odisseu ou qualquer um de mesmo naipe. Se alguma vez chorou, ninguém soube. Mesmo a doença que o perseguia desde moço, só vim a descobrir quando já não fazia diferença. Entendi com isso que toda coragem é vil, vazia, não passa de uma dura forma de administrar os medos. Assim fez, timidamente, contando cada passo, na incerteza da próxima esquina, num caminhar breve a percorrer estreitos cinqüenta e cinco anos.
Quantas vezes proseamos sobre quase tudo que se permite entre pai e filho. Que falta fazem as nossas conversas, nas sextas-feiras em que o mundo esvaziava, e na área de casa, o ventinho bom de que tanto gostávamos, as pernas estendidas, as cadeiras de ferro trabalhado pintadas e repintadas milhares de vezes a quatro mãos entrelaçadas. No quando das datas festivas, o esperado presente, sempre dois, um do mundo, outro da vida. Cada brinquedo vinha acompanhado de um livro, ambos embrulhados no mesmo papel colorido, para que não houvesse distinção, para que não cobiçasse apenas o que as propagandas de tevê ordenavam. Dessa forma, conheci as letras, e com elas tracei um íntimo pacto, uma justa obrigação com aquele que se tornara senhor de todos os mundos que a meninice me trazia.
Fizemos tudo que podíamos ter feito: jogamos futebol sem saber, comemos jaca mole nas andanças pela serra, dormimos em casa de taipa pelas bandas do Sítio Comum, onde nasceu e se criou, meio do mato, pisando manga madura nos caminhos que levavam ao açude do Careta ou ao banho no Jitó. Na serra grande, menino que era, sentia tremer os ossos das histórias de visagem que contavam na boquinha da noite. Lembro a do assobiador, alma penada que seguia os passantes pelas veredas, soltando um uivo fino até o cidadão parar e deixar alguma prenda que acalmasse o vulto.
Não nos despedimos, não nos tocamos, não conversamos sobre política e futebol, não nos enfrentamos, tudo ficou por ser feito. Ao chegar em casa, em um vinte e três de maio, o rádio desligado, os sapatos ladeados sem a lama da rua, as cadeiras de ferro recém-pintadas postas gentilmente num canto de sala. Faltaram os pacotes coloridos, esses mesmos que me garantiram brinquedos e livros, e, por uma vez que fosse, acalentar seu grisalho mundo, para devolver o sorriso que sempre lhe coube tão bem.

7 comentários:

  1. Lamento não sentir o mesmo... mas suas palavras me fizeram entender.


    *S

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  2. Seus textos sao únicos, pois eles tem um poder de nos arrastar para um mundo que conhecemos ,mas que não paramos para visita-lo, ou seja, para os detalhes do nosso coração!!1

    Muito emocionante...

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  3. amei!!!! me emocionou profundamente...me identifiquei bastante.

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