Amigos leitores que por aqui já passaram

sábado, 15 de agosto de 2009

As três imagens


Os braços amolecidos da pequena escorriam, e uma cegueira involuntária aplacava a ira da mãe. O primeiro desejo foi o de rasgar as cortinas, atear fogo. No entanto, apenas baixou a vista em direção à poltrona no canto do quarto. Simulou uma última conversa com a filha, que tinha agora quinze anos. Recomendou-lhe cautela, pediu que não voltasse tarde, franziu a testa ao ouvir da menina que já não era mais criança para tantos cuidados. A lâmpada acendia e apagava. Selecionou algum ponto obscuro entre os ponteiros do relógio, encontrando as horas em um movimento leve. Os dedos da menina, tão parecidos com os do pai.
As enfermeiras marchavam no corredor. Se casasse, seria em julho. Aproveitar as férias, mais tempo para a lua-de-mel. Um dia antes do casamento, descobrira a gravidez. Existia entre elas, mãe e filha, uma tênue partitura, desgastada por certo, mas ainda precisa, aprumada. Como toda mãe, amava de forma indelicada. Destemperava-se ao menor sinal de intimidade por não saber o caminho – nem mesmo se buscasse em outras eras, nem se reouvesse as páginas do antigo álbum, saberia como lidar com aquele nariz gelado roçando-lhe a face. Era menina de novo. No telhado, escrevia o diário. Domingo, quase não resisti quando Carlinhos chegou ao catecismo, estava uma coisa, nem me atrevi a sentar perto dele, muita gente, muita mesmo. O pai é que insistia para saber o que tanto a menina escrevia. Um insensível. Quem revelaria segredos tão íntimos ao próprio pai? Torceu o corpo em direção à mesa de cabeceira. Cartões de melhoras, restos de comida. Um belo quarto, afora as rachaduras no gesso do teto. O médico finalmente chegou.
A mãe permaneceu presa ao ventre da filha, num movimento agônico de retorno. Atravessou o corpo frio da menina, sentiu os tumores, a medula, o cérebro. A viscosidade enojava. Rugosos, sólidos, quebraria o espelho e a vidraria da janela. Belo quarto, com vista para o parque botânico, estaria lá a filha, remoçando todas as idades, apelidando as pessoas que passavam, gostava disso, não via maldade, ou, se via, era branda, comedida, de criança. Outra enfermeira, avermelhada e seca, trouxe-lhe um copo de água com açúcar. Os sedativos faziam sua parte. A última cena foi a da filha, seis anos, carregada para longe. Contraía a mão, o corpo da pequena amolecera de repente. Gritou que socorressem, mas em vão, esquecera de quebrar os espelhos do quarto, a menina seria capaz, agora a mãe, em último caso, apenas empurraria os cacos para debaixo da cama.

2 comentários: