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quinta-feira, 19 de julho de 2012

Surrealismo

       
         Se as passadas não fossem tão sem aprumo, a lembrar os cães de pernas amolecidas e dependuradas que rondavam a rodovia; se não arrastasse a carcaça como se quisesse, a todo custo, obrigá-la a seguir pelo acostamento aferventado pelo pino do meio-dia; se não alegasse conversar com as gentes mortas do lugar, se não tecesse longas palestras com as pedras e os postes; se nada disso distraísse, Faustino por certo seria um dos convivas mais respeitados no lugar por onde se abancava. 
        Filho de um ex-vereador, desde molecote manifestava intenções de correr mundo, conhecer outros países, ser gente de verdade, como dizia sua mãe, D. Generosa, que Deus a tenha em bom espaço. Futuro embaixador, diplomata de primeira linha, era o que o pai previa para o pequeno Faustino, menino curioso das rotas globais, dos idiomas, das capitais. Nas reuniões familiares, o pai, menos para entreter, mais para gabar-se do filho promissor, convocava Faustino e desafiava qualquer um a ventilar o nome de um país para que o menino, de pronto, devolvesse a capital. Síria. Damasco. Noruega. Oslo. Canadá. Ottawa. 
         O pai, pesado de orgulho, escanchava-se na poltrona de couro, regalado por sua promitente cria. 
         Faustino interessava-se cada vez mais nos estudos. Prepara-se vorazmente para as provas do Instituto Rio Branco. Finalmente poderia conhecer todos aqueles países de cujas capitais utilizava-se para impressionar as pessoas. Rapaz de ouro. Filho assim não se pensa mais em ter nos dias de hoje. Que bênção. Que dádiva. Não namora. Há quem diga que não gosta de mulher. Puro despeito de quem não pôs no mundo criatura tão abençoada.         
        Foi pelos dezessete, quase dezoito, que começou a ter as primeiras visões. Eram como vultos, borrões do tamanho de um ente esgueirando-se pelas paredes. De princípio, ignorava, acreditando ser fruto do cansaço por tantas horas de estudo. Mas as aparições ficaram cada vez mais frequentes. Chegavam a tomar formas, traços familiares, como no dia em que jurou ter visto o finado Chico da Boa Vista sentado no alpendre, tomando cachaça e mostrando o único dente que jazia na boca. 
         Não deu muito tempo e os pais perceberam a aflição de Faustino. Não queria mais estudar até tarde da noite, como tinha por hábito. Passou a acender velas por toda a casa. Prostrava-se no meio da sala para rezar, e rezava com vigor, como se a própria existência dependesse daquilo. Aos berros, confessava-se a alguém que ninguém conseguia ver, a não ser Faustino. Ele vê anjos, meu Deus, são os anjos de Nosso Senhor que visitam Faustino. D. Generosa tentava, em vão, conformar-se com tudo aquilo. O pai buscava soluções mais práticas: psiquiatras, umbandistas, exorcistas; nada parecia tirar das costas de Faustino o peso da insanidade.
            É o que dá estudar demais. Enlouqueceu. Melhor internar. 
        Faustino foi levado para uma clínica especializada em distúrbios mentais. Lá, os vultos, até então individuais e, de certa forma, organizados, passaram a surgir aos montes, em expressões semelhantes às dos quadros surrealistas de que costumava achar graça por achar aquilo incompreensível demais. 
           Hipnotizado pelos remédios que lhe eram dados em doses homéricas, apenas observava o que se lhe apresentava: uma renitente desorganização de formas, sons, até mesmo odores.  
          Com o tempo, fora desenganado pelos médicos, que aconselharam aos pais que o mantivessem em casa, sob forte medicação, e que, em hipótese alguma, permitissem que ele saísse sem a tutela de algum responsável, pois isso poderia colocar a sua vida e, principalmente, a de terceiros em risco. 
          Assim foi feito. Faustino tornou-se homem feito quase sem ver direito a luz do sol, a não ser pelos veios luminosos que se lançavam das venezianas. No mais, trancavam-no no quarto por horas, que logo se transformaram em dias, meses. Mal ficou sabendo da morte de D. Generosa. Morreu de desgosto a pobre. Não é qualquer cristão que suporta uma cruz assim. 
           O pai vendera tudo que pôde para bancar o tratamento do filho. Em um final de tarde de domingo, depois de uns goles de zinebra e das lembranças de quando Faustino entretinha os parentes com sua memória aguçada, decidiu pôr fim a tudo aquilo, pendurando-se pelo pescoço nos punhos da rede. 
      Faustino, a partir dali, não possuía mais ninguém que interviesse por ele. O vizinhos, como se realizassem o mais nobre dos atos, livraram-no do quarto. Está livre. Pode ir. Quem vai dar de comer a ele? É de assustar alguém assim rondando pela vizinhança. 
         Sem o cuidado dos pais, pelos escorridos no corpo feito bicho sem dono, unhas salientes e repartidas, rosto grave escondido pela barba espessa; Faustino segue, saco de pancadas dos bêbados, alvo das chacotas dos moleques, motivos das orações das beatas mais antigas. 
          Final de tarde, corre para o mato e conversa com os vultos, que agora são como companheiros, tão incompreendidos quanto ele, tão precitos quanto ele, tão sem amigos e parentes; Faustino descobrira naquelas aparições o mesmo alento de quando os pais estavam vivos. Conta-lhes histórias, diz das viagens que nunca fizera. O céu avermelhado dobra-se para ouvir. As plantas espinhentas encolhem as unhas para não machucá-lo. O gato maracajá, o único da região, aparece só para rir das anedotas de Faustino. Ao lado, o pai, bonachão como sempre, orgulhoso de ver o filho angariando a atenção de todos. D. Generosa contabiliza anjos, que tudo aquilo só podia ser obra de Deus. Os vultos, alguns familiares, outros retorcidos, apenas recebem atentos as palestras de Faustino. O melhor momento é quando ele devolve as capitais. Austrália. Camberra. Não seria Sydney? Faustino ri como nos tempos de menino. 
             

Um comentário:

  1. Um texto que nos convida a terminar de ler,por ser interessante,intrigante e curioso.À ti meu primo,parabenizo por esse blog e tenha a certeza de que serei assídua leitora dos seus textos...abraços Vanessa

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