Amigos leitores que por aqui já passaram

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O surrealismo do amor

         
          Havia algo de mar em meus olhos, desde a última vez. Algo sereno, um torpor esverdeado, nada que lembrasse lágrimas, ainda que as houvesse sem a culpa que as torna invasoras, ainda que apenas se alojassem, impressentidas: vistas de longe, reluziriam. É um tempo de profunda estranheza, longe das impossibilidades que finalmente nos afastam; sinto-me guarnecido por uma delicada sensação de conforto que incomoda, como se estivesse em um corredor de hospital prestes a ser medicado, o cheiro forte de álcool ardendo nas narinas, uma apreensão entre fadiga e desaprumo. 
       O amanhã adocicado de que tanto falaste e com que, quase sempre em horas mortas, passou a acostumar-se não se media mais em versos decadentes ou em promessas mirabolantes. Fez-se lancinante como quem se joga à imensidão de um mar ardilosamente convidativo, braços de ondas leves eternamente abertos aos que seguem o destino dos antigos navegadores: morrer pelo orgulho de ir além da dor. E o que existe além disso? O espelho, quem sabe. Um reflexo hostil a lembrar que esquecemos alguma coisa pelos caminhos, ou mesmo que deixamos para trás outros caminhos para vivermos encaixotados em coisas aparentemente seguras e sóbrias. Se é disso que tratam quando transfiguram as noites enluaradas, prefiro as explicações físicas dos fenômenos. Nem mesmo a quântica, poesia vertida para a ciência, arrefece  tamanhos arroubos de esterilidade sentimental. Dois sobreviveriam no mesmo mar, jamais um apenas. E tantos vieram, tomando de assalto os espaços marinhos de que eu, erroneamente, me aclamava dono. As inúmeras tentativas de reagir não surtiram efeito, que esse mar gritava por ser conquistado: dezenas de naus, eivadas de justiça, rasgavam-lhe o manto. Sinto-me intruso, preso a inconsciências há muito destituídas de ilusão; avisto uma ilhota estrategicamente acolhedora. Deito solene à praia. Adormeço. 
        Em sonho, as naus desaparecem, dando lugar a uma profusão de arco-íris por onde deslizam mitológicas criaturas marinhas que me apontam os portos mais seguros. Entre o céu e o mar não mais se veem intempéries, pois são como amantes dos mais indecentes, invertendo posições, girando incessantemente em um cio absurdo. No continente, alguém acena. Os olhos de porvir iluminam a trilha de algas deixada pelos tritões. Ao fundo, dezenas de sereias entoam os mais belos cânticos; durante os tons mais agudos, flechas luminosas disparam de suas bocas e cingem o firmamento com gigantescos círculos de fogo. São como a passagem de ano que nunca tivemos. Ao finalmente atracar, encontro-a nívea como nunca ousaria mostrar-se. A partir daquele instante, não há o que se manifeste em um que não se realize pelo outro, que o medo inexiste.
            O amor, em sua face mais restrita, não passa da simples ausência de medo. Talvez, por isso mesmo, tal forma de sentimento confunda-se com o que é impossível. Não temos tempo para ousadias. Ousar é cansativo e arriscado. Aliás, engana-se quem acredita ser a noite o habitat dos ousados e insolentes. Que mérito há em ser quando todos já o são? Se as gentes decidiram deturpar a normalidade, ousa quem se apresentar como normal. 
           Ama verdadeiramente aquele que se admitir intruso, portador de palavras que a um alentam e aos demais incomodam. Ama o que se deixa levar pelo absurdo das intermináveis viagens pelos mares d´alma. Ama quem aceita a ausência como uma preparação espiritual para suportar os profundos golpes de felicidade que ainda virão. Ama não quem atravessa distâncias, mas quem não as deixa existir. Ama quem memoriza datas, descrevendo com orgulho de mãe cada segundo que circunda os encontros. Ama quem premedita discussões. Ama o que descobre carícias que jamais viriam à tona se não fossem as premeditadas discussões. Ama quem ousa carregar em si a marca dos desbravadores de outrora. Ama quem não acredita no impossível. Ama quem surrealiza.   

Um comentário: