Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Discutindo relação


            Há muito cortei relações com a tevê. E pensar que éramos tão amigos, confidentes fiéis de todas as horas. Tínhamos nossas desavenças, mas nada que maculasse a fé que passamos a nutrir um pelo outro. Sim, ela me entendia como uma irmã mais velha. Foi com ela que aprendi a fantasiar, a ter paciência, a falar apenas na hora certa, a fazer boas escolhas, a renegar um mundo que, de tão verdadeiro, parecia em preto-e-branco. Tínhamos um laço muito forte, umbilical eu diria. Se me aborrecia por aí, era nela que ia buscar consolo, e a danada sempre me trazia a fórmula certa para esquecer as dores mundanas: um desenho animado inédito, um filme de terror – ela sabia que eu adorava esse tipo de filme. Mas isso tudo é passado. Acho que amadureci cedo demais, talvez antes dela, e isso é fatal para qualquer relação. De estalo, o que ela me trazia já não me impressionava como antes. A freqüência com que nos encontrávamos foi esmorecendo a tal ponto, que hoje a tenho como uma estranha presença na minha casa. Sei que isso a deixou extremamente ressentida. Nada pior do que uma relação mal resolvida, interrompida por força maior. E ela, toda vez que me abandonava, pedia desculpas pelos transtornos, botava a culpa nos tais problemas técnicos e fazia promessas de que tudo voltaria ao normal. Eu não fiz isso. Simplesmente a abandonei, sem aviso prévio. Agora, noto que ela tenta a todo custo vingar-se de mim, tudo porque cresci, porque a vida passou a ser mais animadora e instigante do que aquela caixinha de surpresas que um dia alguém inventou de me oferecer como cura para a solidão. Olha que ela tentou me segurar, utilizando-se, inclusive, de um jogo baixo de sedução. Quando menos se esperava, vinham as apelações: mulheres seminuas, de seios intermináveis, corpos sinuosos espalhados pelos quatro cantos da tela, tudo que um adolescente franzino gostaria de ter num final de tarde vazio. Mas não ficou só nisso. Por onde quer que eu fosse, lá estava ela, observando-me, saindo do ar como em sinal de protesto pela minha indiferença; repetindo aquelas musiquinhas enfadonhas das propagandas de loja de calçados; até no meu primeiro beijo, na área da casa da então namoradinha, quando a coisa já estava engrenando, a desgraçada soltou a maldita chamada de um plantão para anunciar alguma notícia trágica de última hora; a menininha com quem me aconchegava correu para a sala para descobrir que Tancredo Neves havia morrido. E quanto à interrupção do meu primeiro beijo, quem iria anunciar essa tragédia? Ela sempre foi assim, vingativa na alma. Por isso a abandonei. E olha que hoje ela está bem mais atraente, esbelta, moderna. Se antes se embaraçava de ser a rainha-mãe de nossos lares, agora se apresenta como uma princesa, repaginada para seduzir todos que se entregam ao seu canto de Iara. A verdade é que, em alguns momentos, chego a sentir pena dela. Sozinha na sala, sem ninguém que a ampare, sem uma alma por seduzir. Nessas horas, até tento me aproximar, quem sabe propor uma trégua, em homenagem aos velhos tempos. Que nada! A desgraçada sabe me apunhalar. Quando pensei que estávamos nos entendendo novamente, uma nova estocada, profunda e figadal: Big Brother. Quer saber, ficamos melhor assim. Vamos fingir que não existimos. Ela lá e eu cá. O tempo se encarregará de apontar o verdadeiro culpado.

Um comentário:

  1. Amei o texto! É assim que me sinto hoje depois de cortar relações com a TV. E o final do texto não poderia ser melhor - Big Brother Brasil -, forma mais irônica de retratar o quanto a TV tem involuído. (:

    ResponderExcluir