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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Desvelo

          Com delicadeza, estreitou o laço no pescoço da filha. Pendurou de lado a cabeça para ver se nada faltava no vestidinho dela. Pegou uma flanela de enxugar pratos, umedeceu-a na ponta da língua e passou suavemente no canto do olho da pequena, que se espremia toda, contraindo os lábios como num sorriso leve. Fatigada, estacou diante da cria, percebendo o bom trabalho que fizera na arrumação da guria.
          - Que linda essa menina!
         Era um orgulho só. É pena que não pudesse oferecer mais nada. Todas as roupas da filha estavam perdidas, a pobrinha sofria horrores para caber nelas. Aquele vestidinho vinha de uns dois anos, mas ainda assentava no corpo minguado da menina. Se não fossem os estrangeiros que, de quando em vez, aparecem com doações e mantimentos, os pequenos da comunidade andariam nus. E os gringos, quando davam de aparecer, pareciam os anjinhos de gesso da igreja de Nossa Senhora do Carmo: rosto arredondado, de maçãs avermelhadas; olhos de cetim azul, compreensíveis, pacientes com o curuminzal da favela. O modo de falar era bem diferente, mas dava para perceber como ficavam felizes, e até emocionados, quando a molecada se amontoava em torno deles, gritando, uivando, pulando, à cata de alguma prenda. E os brindes eram os mais variados, de escova de dente a bola de futebol, de livro a cesta básica. Em uma dessas, a filha conseguiu aquele vestidinho, marrom, com laço rosa e flor. Tinha cheiro de coisa nova.
         - Que linda essa minha menina!
         Repuxou novamente o vestido da filha como se quisesse alargar o tamanho da menina. Afastou-se um pouco, mirou a pequena de cima a baixo e fez sinal de aprovação. Um primor. Criança tão vistosa, tão limpa, não merecia viver ali, no meio de tanta miséria, misturada à podridão das fossas estouradas, coberta de mosquitos, descalça feito uma indigente. Suspirou. Pediu para que a menina lavasse as mãos e escovasse os dentes. Como finalizasse um ritual, penteou-lhe os cabelos, em movimentos leves, ternos. Terminado o serviço, pôs-se a acarinhar a filha, ajoelhando-se diante dela, examinando-lhe as orelhas, a boca, o nariz.
          - Minha menina...
          Seis horas. Nem dia, nem noite. A menina, por costume, benzeu-se. A mãe fitava apreensiva o movimento na rua. Até que parou um carro em frente ao barraco. Era um casal de gringos, cheios de presentes, sorridentes como em todas as outras vezes. A menina agarrou-se à perna da mãe. Um urso de pelúcia enorme logo chamou a atenção da pequena. Os dentes da estrangeira eram brancos demais. Quase não havia espaço na tapera para tanta quinquilharia. Televisão, aparelho de som, mantimentos, roupas. Por fim, o gringo estendeu a mão à garotinha, que escondeu o rosto na barra da saia da mãe.
          - Vá com ele, minha filha! Tenha medo não, que o moço é bom...
          A mãe então pegou a menina no colo e entregou à mulher estrangeira, que a abraçou como se a houvesse concebido. No fim da partilha, o gringo preencheu um cheque e deixou sobre uma cadeira. O casal apressou-se em sair, a menina chorava, pedia pela mãe, que se limitou a observar pela janela, admirada da beleza da filha com aquele vestido.
          - Que linda essa minha menina! Que linda...

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