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domingo, 16 de janeiro de 2011

Discernimento

          Por ocasião dos festejos de Nossa Senhora das Dores, a cidade inchava de gente de todos os cantos. A matriz cercava-se de barracas sortidas de tudo que se pudesse imaginar. As cadeiras, estrategicamente postas à calçada das casas, vigiavam os passantes, sobretudo os forasteiros, que a cidade com eles ganhava ares de modernidade. As notícias espalharam-se com assustadora velocidade. Os habitantes do lugar, acostumados à simplicidade do quase isolamento, trajavam mortalhas, porque o tempo dos milagres tinha sido anunciado. Os pequenos apareciam como anjinhos, em promessa à Nossa Senhora, para que as bênçãos continuassem a descer por ali. Os de fora vinham curiosos, numa romaria desengonçada, interrompendo a todo instante o trajeto na esperança de uma imagem que servisse de testemunha. Aleijados engatinhavam a duras penas até a barra da escadaria da matriz; carpideiras profissionais não mais pranteavam os defuntos alheios, mas os seus próprios e os que estivessem por desencarnar, pois não havia dúvidas de que aquilo era obra do Senhor. Centenas de peregrinos atalhavam-se na praça, tecendo ladainhas, estendidos no rumo da imagem da Virgem. A modesta cidadezinha nos confins das Pedras passava a se alimentar de estranhos de joelhos estourados e pés lacerados. Poucos temiam a condenação da novidade. Seria antes uma dádiva, um sinal de sacralidade. Ao meio-dia, as portas da igreja finalmente se abriram para fieis e curiosos. E era tudo verdade. A multidão se apertava para constatar o fato. Senhoras de mantilha prostravam-se, num ininterrupto sinal da cruz. Pedintes revolviam-se no chão, como cães; políticos e acólitos entoavam cânticos de arrependimento; vendilhões abriam mão de seus pertences e subiam no antigo juazeiro, de onde podiam ter uma melhor visão do acontecido. O prefeito aproveitava a repercussão para lembrar a todos que o milagre ocorrera durante sua gestão e que Deus tinha abençoado sua administração. Os incrédulos quedavam cegos, e o mundo para eles tornava-se uma mancha corrosiva, de contornos angulares como a silhueta da Virgem. Diante do altar, à sombra do Cristo crucificado, o motivo da algazarra. Era um casal de jovens, em uma penitência inumana, que já passavam três meses de quando por ali se enraizaram, ajoelhados em contrição, olhos e mãos espremidos, movidos por uma fé alentadora e inquietante. Não se alimentavam ou bebiam água. Pareciam estátuas de cera, sem vida, sem dor, sem necessidades físicas. Pouco se sabe de como tudo começou. Havia quem dissesse que os dois se encontravam escondidos para fazer safadezas pelos terreiros. Outros afirmavam que eram namorados e que a menina pôs-se a engravidar antes da hora, por isso estariam a clamar pelo perdão de Deus. Os mais fervorosos acreditavam estar diante da reencarnação da Sagrada Família. Chegavam a cogitar que o nome da cidade mudasse para Nova Palestina. Eram José e Maria pedindo discernimento. Ela daria à luz um fruto do Criador. Oravam juntos na esperança de que Deus, na sua infinita misericórdia, mostrasse a eles e a todos que cressem a iluminação devida. Os padres não compactuavam com essa idéia. Quando eram chamados às explicações, desconversavam. Os sacristãos é que recolhiam os ex-votos e os dízimos. Se era coisa de Deus, não se sabia ao certo. Mas dali o casal não arredava, apesar da confusão espalhada na praça. Uma espécie de guarda de proteção foi montada. O que tentasse tocar um dos jovens seria brutalmente repelido. O calor de setembro enervava os romeiros, infligindo-lhes um prolongado suplício, que entibiava as cantorias e abria clareiras em meio ao povaréu. Pela hora do ângelus, no toque das Ave-Marias, em meio a centenas de espasmos de fé e indulgências, o casal lentamente despertou. Com dificuldade, os dois se levantaram e caminharam em direção à porta da igreja. Por alguns minutos, puseram-se a investigar o lugar, as pessoas. Como não encontrassem o que buscavam, entreolharam-se e, sem dizer palavra, desceram a escadaria. Um imenso corredor humano se abriu para dar passagem aos dois, que seguiram unidos, até que, para a surpresa de todos, se separaram, tomando cada um seu próprio rumo, como se nada houvesse de fato acontecido. Um dos sacristãos, temendo qualquer animosidade, anunciou aos gritos a boa nova:
         - Milagre! Milagre!

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