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domingo, 25 de outubro de 2009

O bordado pelo avesso

A viagem prosseguia morna e o tempo se esticava. Olhar pela janela dava uma aflição. A paisagem estorricada, a sequidão dos riachos, os arremedos de bichos a farejar qualquer esboço de pasto. O sol das quase três horas derretia-lhe a maquiagem. Faltavam ainda uns bons quilômetros. Retocava os lábios, os lados do rosto, queria parecer bem. Poucas poltronas ocupadas, um silêncio de dar dormência.
Quinze anos sem dar notícias. Um suspiro, uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu então voltar, rever a casa materna, engolir as mágoas. Empurrava os seios com força, arrumava-se na poltrona, cruzava as pernas, sacudia os cabelos.
A vermelhidão das horas riscava o horizonte. A modorra lhe trazia o velho pai. Seu Estênio, olhar grosso, sobrancelhas grudadas. Sobreveio o dia em que parou a lida para improvisar um penteado numa espiga de milho. Apanhou para a vida toda. O pai, dizem, morreu de desgosto, quando, no caminho da cacimba, flagrou os dois primos. De nada adiantou bater, xingar, amarrar no pé da cama. Quando é para se soltar, não tem quem segure. O velho não resistiu. Adoeceu, prostrou-se e dias depois morreu.
Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, de alguma forma entendia, mesmo calada, consentindo com o olhar distante, perdida no terreiro, tangendo as galinhas. Vivia do marido, que a tirou da família ainda moleca, numa partilha de gado. De dia, era tratada como uma criada, com tudo pronto na hora certa. De noite, o velho se chegava, fétido dos bichos, e a embuchava. As crias não vingavam. Cinco sequer vieram ao mundo. Dois saíram cedo demais e viraram anjos. Olhando pela janela, sentia-se sobrevivente. Agora a mãe, próxima, traços delicados, tornava-se um remorso. Tempo demais sem dar notícias. Era tarde.
Saiu da brenha para as terras do Sul com as roupas do corpo e uma escolha. Prostituiu-se em postos de gasolina, conheceu toda espécie de homens, até se agüentar como manicure em São Paulo. A vaidade era a única virtude que lhe restava. Os cabelos vinham na cintura, as unhas vermelho-sangue, o carmim, as lentes cor-de-mel. Por onde passasse, um assobio distante, uma piadinha. Olhando pela janela, a beleza refletida, o tempo cuspia-lhe a cara.
- Quem vai descer na Passagem da Onça!
Tanta exuberância atrapalhava os movimentos. O salto agulha, a insegurança nos passos, o olhar inquiridor dos passantes. Não trazia bagagem, só uma bolsa tiracolo. Apanhou uma moto-táxi, não tinha segurança do caminho.
- O sítio de D. Felícia, por favor!
Puxou o vestido, aprumou-se na moto e, aos poucos, começou a reconhecer a trilha. O açude do Traguçu, a cancela da fazenda dos Mota, a velha cacimba, agora desativada.
- D. Felícia era mulher boa, decente, não merecia tanta solidão...
- Com certeza!
A porta do sobradinho era familiar. O chão de cimento queimado, o forno de pedra, os quadros em feitio oval. O quarto, o cheiro. Da janela, o mesmo vazio que a mãe sempre procurava. Sentou-se diante da penteadeira, os frascos vazios de perfumes, os gavetões emperrados, o espelho. O tercinho da mãe. Sempre se apegava ao tercinho, quando o velho Estênio dava de surrar quem estivesse na frente. Retocou a maquiagem, apanhou o terço e saiu.
O vestido esvoaçava, o salto afundava na piçarra mole. Tinha chovido. Tirou os sapatos, jogou na ribanceira.
- Pra que lado fica o cemitério, seu moço?
- Depois do matadouro.
Que ironia, um cemitério e um matadouro. Caim e Abel. Riu-se. Apertou o passo, o calor era insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu apontou o lugar. Felícia Neves de Araújo.
Não havia mais nada a fazer. Apertou com força o terço. Esticou o pescoço. Ninguém no cemitério. Pouco a pouco foi se desfazendo. Tirou as unhas postiças, os cílios, limpou o batom. Enfiou a mão no vestido e sacou o enchimento do sutiã. Por fim, puxou a peruca e jogou no tempo.
Da tiracolo, um revólver. O cano na boca, um disparo. Umas galinhas ciscando tomaram um susto. Continuaram a bicar a terra.

5 comentários:

  1. Adorei o conto, simplesmente sensacional :)

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  2. puxa, muito bom, muito bom mesmo
    fantástico

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  3. Às vezes, eu fico imaginando como seria assistir a uma aula de análise dos seus escritos. O conto é sensacional. Sempre um prazer passar por aqui e se perder na leitura. :)

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