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sexta-feira, 17 de maio de 2013

O surrealismo da solidão



       Enfim só, e que a solidão pouse suavemente sobre os ombros, sorria um sorriso antigo e prometa visitas amenas e rápidas. Que chegue sem gravidade e estenda a mão por acolhimento, despendendo carinhos de colo, como se me houvesse libertado por ressurreição. Que seja tão próxima quanto as noites que se derramaram a fio, pactuadas com a manhã certeira e seus raios impressentidos e fatais. 
          Solidão, essa menina arteira a brincar de gangorra nos ponteiros, deixe-me ressurgir um pouco, mas sem desamparo. Vele pelas minhas rotinas, banhe-se nas minhas palavras exangues, liberte-se na voz ausente, que não mais existirão espaços que a delineiem tétrica. Seja, para mim, o arranha-céu dos suicídios, o décimo oitavo andar. 
          Os dias preenchem-me de um cansaço absurdo, embora familiar. Sinto ainda um amargo na língua, um formigamento que não cessa e que entorpece. Redivivo, alço-me sobre olhares perdidos, como se reconhecesse em cada um deles os pedaços puntiformes de um espelho. É neles que habita a solidão, que me acalenta com suas histórias de trancoso, suas andanças sem glória pelas veredas da alma. Tenho sede. As crenças que me chegam em vultos não me abalam. Preciso sair urgentemente, calçar sandálias alheias, sem promessas; a vida ainda responde, soturnamente. 
          Apenas os primeiros raios de sol me incomodam. A claridade torna-se parte de mim aos poucos. Vejo estrelas que formam um desenho indecifrável. Ninguém à porta; cães ao longe anunciam a glória de um novo dia. Não latem pela minha presença, por certo. Sequer desconfiam de minha existência. Agem por instinto, por capricho. Eu, por dor. 
            Algo me dói. Um grito rouco, aprisionado entre ossos e veias salientes, asperge a memória. Existe um suave tom esfumaçado que, em vez de ocultar, decifra. Quais artes a solidão reserva para esta noite? Não seria eu perito o suficiente para me esquivar dessa doutrinação chinesa? 
              Estou ali, ao lado de meu pai, suplicando uma última bênção. Meu filho dorme da forma mais serena. É com ele que quero ter, ainda hoje, no paraíso. Ouço gemidos. As aves lançam-se sobre os castiçais. A sombra das velas descreve figuras distorcidas. Uma delas me é íntima. 
              Só, desembrulho presentes. Os papéis laminados embelezam futuros tão artificiais quanto o clarão que me cega. O sol bate violentamente nas lâminas do papel. O calendário está na cozinha, e eu sinto imensa preguiça de ir até lá para arrancar-lhe as páginas que já não servem. Comprei sapatos novos, embora os velhos ainda me caibam. 
           O sono me abate. Desenhei algo na parede com o dedo indicador. Um olho, uma lágrima. A solidão continua aqui, ao meu lado, como se me esperasse sair de um estado mórbido de sonolência profunda. Sei que pretende uma paga. Um dia, quando sono não mais houver, honrarei todas as dívidas. Por enquanto, a letargia. A solidão me conta histórias de viagens. Algumas delas são tão claras quanto o dia que, pelo olho mágico da porta, vejo chegar. 

Um comentário:

  1. É incrível a maneira que você consegue passar esses sentimentos. Lindas palavras, por mais tristes que sejam os sentimentos do texto
    Gosto do que você escreve.

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