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domingo, 19 de maio de 2013

A memória e as chuvas



          Chove. Uma chuva desarmoniosa, ora desesperada, ora levíssima. Em nada lembra as chuvas de outros invernos, as surpreendentes chuvas de março e abril, encantadoras por sua onipotência. Chove. Sem encantamento. Apenas a chuva, concreta e esparsada. 
              Nasci em um maio chuvoso. A chuva, pelas feéricas histórias de minha mãe, acalmava-me como se me embalasse. Um pingo de gente arrebatado, esbugalhado diante daquela profusão de cinza, vento e água, muita água, e eu tão pingo quanto os que me tocavam levemente o rosto. Essa chuva não é como a de hoje. Chove. Sem abstração. O que vejo remete a uma pintura neoclássica, de traços firmes e tons rigorosamente sobrepostos, construindo um painel distante, sem nada que inove. 
           Molecote agora, as chuvas de antigamente traziam consigo pacotes e mais pacotes entupidos de traquinagens. Pelas ruas sem betume formavam-se corredeiras que, aventureiros que éramos, enfrentávamos com ar de conquistador espanhol. Dezenas de meninos sapateando sobre as enormes poças, diríamos piscinas olímpicas, exercendo, sem fatalidade e com imensa destreza, a plenitude da liberdade. As biqueiras das casas, se não me esqueço, transformavam-se em quedas d'água a fazer das Cataratas do Iguaçu um igarapé morno e sem graça. Éramos nautas de primeira estirpe, capitães de fragata, príncipes submarinos. Olha o torpedo! Seguia-se uma estrondosa explosão, e o encouraçado afundava;  canos, latas, flores de bananeira, e a esquadra, aos poucos, se agrupava, pronta para mais uma missão suicida em mares nunca navegados. Chove. Da forma mais meteorológica possível, como previu a moça bonita do telejornal. 
           O tempo das primeiras namoradas havia chegado. Com ele, as chuvas. A praça da delegacia abarrotava-se de jovens em ebulição. Domingo à noite, findada a missa, corríamos para lá, à procura de qualquer coisa que nos distraísse das rotinas. Em uma dessas, além dos habituais maneirismos de praça, surgiu uma figura terna e desengonçada, como a própria juventude. Atarracada, viva de olhos, descorada, mas essencialmente lúdica. Deu de sorrir. Três ou quatro vezes, se não me falha a memória. Pelas tantas trocas de olhares, nutri a esperança de que aquela criaturinha estranha e doce quisesse realmente ter comigo. Hipnotizado que estava, descuidei-me de tudo, inclusive da tempestade que estava para desabar naquele instante. A chuva principiou sem dó, caindo com brutalidade. Os pingos grossos, gélidos; os convivas da praça logo se dispersaram. Perdi de vista a menininha com quem esboçava um possível romance. Corri para debaixo de uma marquise, onde alguns já se aglomeravam. Encolhi-me num canto. E ela ressurgiu, os cabelos desgrenhados, a pele encaroçada de frio. Tecemos algumas palavras que não me chegam agora com exatidão. Quando a chuva amansou, ela se despediu e, com a agilidade de quem rouba, aplicou-me um milésimo de beijo. Saiu correndo para nunca mais voltar. Chove. Uma chuva sem cumplicidade; impessoal demais para um primeiro beijo.  
                Chove lenta e inconsequentemente. Chove sem propósito que seja. Chove para molhar as coisas, não para avivá-las. As chuvas de hoje têm a mesma consistência das lágrimas de ontem. E este céu, inutilmente acinzentado, parece-me grande demais para chorar dessa forma. 

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