Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O amor que nunca tive



          O amor que nunca tive sempre me encontrou despreparado, sem calços na porta, sorriso assim sem graça, sem malícia, de menino tímido no primeiro dia de escola. O amor que nunca tive pairou sobre mim como uma nuvem carregadinha de bons presságios; tanto fez, que se aninhou. Que graça seu rosto afilado de moleca arteira, suas mãos de dedos longilíneos, seu ar de impaciente humildade. Sim, o amor que nunca tive jamais se conteve em declarar aos universos a dádiva que representava cada instante em que seus olhos punham-se a guiar os meus. 
             Ora, direis, ouvir estrelas...qual nada! Antes cada ponto celeste mergulhado na imensa escuridão do espaço sideral derramaria sobre mim, pobre terráqueo apaixonado, sermões e mais sermões, listas e mais listas de recomendações e amabilidades; afinal de contas, tratava-se do amor que nunca tive, e para ele, todos os dias, ergueria nações se preciso fosse. Foi com o amor que nunca tive que aprendi a tocar alguns instrumentos musicais. Violão, flauta doce, até cheguei a arriscar alguns dedilhados ao piano. Quem ama, dizia o amor que nunca tive, deve ensinar o que quer que seja de valioso ao ente amado. Essas lições, ainda que não mais vigore o encontro, permanecerão infladas, pulsantes, e nelas há de residir um algo de saudade, não a que nos induz ao sofrimento, mas a que nos faz pensativos e até risonhos em momentos leves de introspecção. Como era sábio o amor que nunca tive.
           E aquelas adoráveis conversas! O amor que nunca tive conversava sobre praticamente qualquer assunto, dos livrescos aos mais simplórios. Havia classe nas suas palavras, no seu jeito fidalgo de cruzar as pernas e passar suavemente as mãos pelos cabelos. No entanto, sua arte maior não estava nas boas falas, senão na nobilíssima missão de ouvir. O amor que nunca tive ouvia meus desencantos, minhas piadas requentadas, meus desaforos, minhas frugalidades, tudo isso com olhar atento de quem pressente ser aquele o derradeiro momento. Se dissesse algo torturante, o amor que nunca tive revirava os lábios, inclinava levemente a cabeça e desencantava-se de tudo ao seu redor. Se solicitasse seu sorriso, o amor que nunca tive não hesitava segundo em gargalhar escandalosamente, até que alguém próximo solicitasse gentilmente que nos retirássemos do local. Ah, o amor que nunca tive era despudorado, a própria voracidade encarnada em gestos e poses de fêmea livre desde o ventre. 
               Abstenho-me dos detalhes de quando estávamos a sós, noite minguante, sem as amarras do status quo. É que, se fizemos algo a chamar-se amor, já não éramos nós; mas nos tempos dos grandes recomeços, aí encantávamos o mundo, como se o polinizássemos de desejo e insensatez. O amor que nunca tive reconheceu-me, certa vez, como o melhor entre os que ousaram arar solo tão rico. Sofri infinidades ao ouvir tal heresia, comparando-me a mim, detentor de todos os direitos autorais, a reles escribas que, quando muito, lançavam mão de um poemeto enrugado sem a mínima ideia do real intento da paixão. E o amor que nunca tive ria-se como mãe a embalar o rebento. Nunca precisei, dizia, de que foste o primeiro, mas agradeço aos céus por teres sido o último. Quase uma oração.
             Deus, como sinto falta do amor que nunca tive. É que não pude aprisioná-lo ou imputar-lhe culpa de um mundo que clamava por sua atenção. Deixei que se fosse o amor que nunca tive, pássaro a cantar vívido por uma oportunidade de encontrar a porta da gaiola aberta. Libertei-o para que as próximas gerações mantivessem a crença na poesia. Do amor que nunca tive não guardo fotografias ou cartas, apenas a sincera esperança de que brevemente haverá um reencontro, desses casuais, a fim de que possamos recomeçar, como se nunca houvesse existido qualquer notícia de nossa história. E o amor que nunca tive me encontrará despreparado, sem calço, qual menino tímido no primeiro dia de escola. E as horas frias da solidão darão lugar à mais incandescente das verdades. O que é de verdade, repetia o amor que nunca tive, sempre retorna, ainda que pelos caminhos mais inesperados, ainda que apenas pelo desejo de viver o amor que nunca tive. 

3 comentários: