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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Cicatrizes e lembranças




          Meu filho entrou em casa chorando. Qual não foi meu desespero, pois não programei meu pequeno para sofrimentos vãos. No entanto, o diagnóstico foi bem simples: um belo de um tombo, algumas pequenas escoriações e um pouquinho de sangue, que, diga-se de passagem, de alguma forma também é meu. O pobrinho contorcia-se, enquanto apontava as feridas com ares de hipocondríaco profissional. O mais engraçado, porém, era a sua preocupação com a possibilidade de ficar ou não uma cicatriz para a posteridade. Ri-me, o que o deixou ainda mais irrequieto. Até que sobreveio a curiosidade de menino: Pai, você tem alguma cicatriz?
            Como resistir a uma pergunta tão instigante? Claro que tenho cicatrizes, várias, incolores e necessárias, e de algumas delas ainda não consegui amputar a dor. Fiz, portanto, um tour pelas principais marcas que carrego. A primeira delas, bem no joelho, lembrou-me a peraltice de ter sido, por mais estranho que possa parecer, atropelado por uma carroça. Pelos idos em que a vida não cobrava nada, a não ser a própria necessidade de se viver na plenitude de cada instante, como não havia diversões virtuais à disposição, tinha que me aventurar pelas ruas, ainda calçamentadas, subindo pelos pés de castanhola, ateando fogo nas palhas amontoadas no antigo terreno baldio, acertando pedras nos calangos desavisados. Por essa época, inventou-se uma carruagem digna de transportar, com toda pompa cabível, qualquer imperador romano: uma carroça, que um amigo próximo, um negrinho marrento conhecido por Totonho, conduzia como se tomasse de assalto uma diligência daqueles filmes de bangue-bangue, carregadinha do mais puro ouro do Velho Oeste. A molecada esperava com ânsia peculiar a passagem da carroça. Todos os dias, finalzinho da tarde, despontava no horizonte a desapoderada carreira da besta que puxava nossa rústica carruagem. Às vezes, éramos soldados do exército a perseguir os malfeitores pelas plagas selvagens da floresta amazônica; depois, virávamos cangaceiros espaciais a fugir das volantes intergaláticas. A imaginação corria solta, assim como a própria carroça. Mas foi numa dessas viagens que, por uma aflição de tomar as rédeas sem o consentimento do condutor, me desequilibrei e caí. Acabei por ser atropelado pela carroça. Ainda lembro que o estado do joelho depois da queda não era dos mais recomendáveis. O tempo passou, a dor também, e ficaram as memórias das aventuranças em nossa nau de tração animal, capitaneada por Totonho, o príncipe das nossas traquinagens vespertinas.
          Outra cicatriz que me sorri à memória é a que trago na ponta do queixo. Como todo menino em ebulição, houve um tempo em que a libido rondava-me o corpo e a mente da maneira mais avassaladora possível. O melhor é que esse momento coincidiu com a chegada de uma vizinha voluptuosa que, vez ou outra, inventava de tomar banho no quintal, a céu aberto. Meu Deus, apenas uma paredezinha de nada a separar aquela beldade e os olhos indecentes de um garoto sedento por desvendar as trilhas do corpo feminino. Ao primeiro sinal de movimentação, à primeira indicação de que alguém se banhava sem a preocupação de esconder-se do mundo, corria para o meu quintal, subia sorrateiramente pela parede mais ao fundo e contemplava aquela visão amorenada e plena de curvas, sob o morno cenário do cair da tarde, enxaguando cada fresta, sacudindo os cabelos com veemência, reluzindo como um ser imaginário, como uma fada, ainda que nua em pelo. Ela parecia saber que olhinhos maledicentes a observavam, mas, se sabia, não ligava, ou talvez até gostasse da solitária plateia que se punha em camarote a aplaudir sua beleza sobre-humana. Contudo, em uma dessas empreitadas, uma maldita pedra solta, além de denunciar com extrema rudeza minha inaceitável presença a espreitar o banho da vizinha, fez que eu escorregasse de tal monta a bater com o queixo na parede. Foi uma sangueira só. Doze pontos cirúrgicos depois, ainda tive que ouvir umas poucas e boas para que eu aprendesse a respeitar a privacidade alheia. Os pontos se foram. A cicatriz e as lembranças, vivas como a morenice daquela vizinha, ainda permanecem.
              Depois de biografar algumas de minhas cesuras, meu filho acalmou-se e até chegou a dizer que cultivar uma cicatriz não seria de todo ruim. Ri-me novamente, agora um pouco desprevenido. Bem que senti vontade de explicar-lhe que nem toda cicatriz é de boa índole. Existem marcas que nos sufocam, sangrando copiosamente a cada lembrança, encaminhando-nos a tempos que não merecem ser revividos. Meu peito está cheio delas. Espero que minha criança demore para descobrir que nem toda cicatriz nos deve algo, nem toda queda é aprendizado, nem todo sangue exposto estanca com o tempo. 

2 comentários:

  1. Sem dúvida nenhuma, mais uma de suas impressionantes crónicas, que não deixa a dever qualquer João Ubaldo, ou Luis Fernando Verissimo, desculpa se exagero, é o que realmente penso, e alem disso, pra provar que não exagero, ecrevo isso após a leitura do texto, que nesse momento as 23:00 de uma quarta, dia de futebol, onde meu querido tricolor de aço, representa nossa gente em terras pernambucanas, diante do Sport, minha atenção está dividida. Parabéns amigo, mais um texto que alimenta a alma.

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