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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O parto


          A mulher prosseguia, farejando coisa qualquer nos lixos. Nos braços, mal se via carne, apenas rejeitos e a pele frouxa como as mangas de uma camisa. A barriga além da norma. Sentia o tempo de a cria despontar no mundo. O companheiro ia no encalço. Precipitava-se nos sacos de lixo com voracidade. Os dedos como tentáculos. Era noite. Separava garrafas plásticas, pedaços de cano e pão. Sentada no asfalto, a mulher tentava acender um toco de cigarro. Como se quisesse encontrar algo, avivava os olhos pelo betume. 
          - Tá na hora!
          Abancaram-se em uma praça. Caía uma chuva fina. No corpo escuro e sem carne daquelas almas, os pingos reluziam. A mulher tomou assento em um banco de concreto, sem encosto. Baixou a cabeça, lastimou-se pela fome. O outro apenas esperava, acocorado, devorado pelo anseio de vasculhar o enorme tambor de lixo à sua frente. 
           Um fartum tomava conta da cena. Escorria pelas pernas da mulher uma substância rançosa. Curvada sobre o ventre, soçobrou. Deitou-se sobre a pedra fria, sem muito esforço. Virou-se de lado e cuspiu. Fez deslizar lentamente a saliva até o chão. Mijou. O odor fétido atraía mosquitos. Abanava as pernas ora para um, ora para outro lado. 
            Era tempo. O rosto sem expressão. Espremeu-se, expelindo do útero uma criatura murcha, sem pelos, pálpebras riscadas de veias, esboçando movimentos em meio ao sangue e à urina. Não chorava. Apenas emitia sons que se assemelhavam aos de um porco. Mas estava vivo. 
            O homem levantou-se devagar. Mirou a cria com indiferença. Pensava no que fazer para saciar mais uma boca magra. Limpou do rosto um resto de chuva, esquadrinhou a sacola e encontrou um pedaço de pão. Seco. Deu ao recém-nascido, que lambeu como se reconhecesse o gosto. Em seguimento, enlaçou-o com os dedos e levou-o até a mãe. Era leve. Contava-se cada costela. 
            O semblante era o de quem agoniza. O pequeno ameaçava um choro mais exaltado, mas faltava-lhe forças para tanto. Eram dois seres exauridos, mãe e filho. Com cuidado, o homem tratou de desabotoar levemente a blusa da mulher, expondo-lhe as mamas sem viço, uma pele mole escorrendo pelo abdômen. Largou o pequeno sobre a mulher e deixou que o instinto indicasse o caminho. Não demorou, e o infeliz principiou a sugar com sofreguidão o seio inerte da mãe. Excremento, chuva e algo de leite. 
             Vendo que as coisas se resolviam, o homem reencontrou o tambor de lixo. Ali, esquecida em uma sacola, uma quentinha, com um pedaço de frango e arroz. Achou também a metade de um cigarro. Novamente acocorou-se.  Fumou. Demorou-se no tragar, mirando de instante em instante o que ainda restava do cigarro. Não tocou na comida. Deixaria para a mulher. O pixote não vingaria, pequeno demais. Retornou ao ofício. A chuva aumentava. No lixo, um lençol. 
              - Eta lixo abençoado!

             

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