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sábado, 3 de setembro de 2011

Sobre o futuro e os livros


           Futuro. O ano é 2xxx. Ninguém pelas ruas, que não há mais asfalto, calçadas, sequer uma vereda de piçarra mole. O que existe é apenas um vão, um abismo interminável sob os milhões de arranha-céus que se apoiam em estruturas flutuantes. Com as inúmeras catátrofes naturais que sucederam desde que podaram de vez as florestas tropicais do planeta, esta foi a única saída para sustentar a vida humana na Terra: empoleirar toda a população mundial em enormes edifícios flutuantes, longe do solo causticado pelas erupções vulcânicas.
           Para que se pudesse viver uma vida "normal", apesar de tudo, um desses gênios da informática deu de criar um programa de computador capaz de simular as mais variadas situações cotidianas, fosse trabalho, escola, missa, ou mesmo o futebol do domingo, a sinuquinha no boteco ou a paquera na gafieira. Bastava conectar-se a uma máquina, gratuitamente ditribuída pelo governo, para ativar o chipe, que, vale ressaltar, havia sido implantado desde o nascimento. Era uma maravilha. A violência reduzira-se a pó, afinal, se alguém inventasse de simular um assalto virtual, automaticamente o programa lançaria uma descarga elétrica de 10.000V na carcaça do camarada, que passaria de finório a finado de um susto. Todos estavam muito bem protegidos em seus respectivos lares, longe de acidentes, doenças, estresse. 
          Como tudo fora substituído pelo computador, as máquinas passaram a controlar certos hábitos. Na alimentação, por exemplo, cada condômino - que o planeta virara um gigantesco condomínio - tinha direito a duas cápsulas alimentícias por dia, o suficiente para suprir as necessidades calóricas de um indivíduo saudável. Por conta disso, os homens não exibiam mais a velha barriga de chope. Todos com cara de garoto propaganda de alguma marca de cueca. E as mulheres tornaram-se verdadeiros cadáveres ambulantes, uma vez que a magreza ditava a moda, sobretudo por não existir alimento suficiente no planeta para dar conta de tanta boca. 
        Até o sexo era regido por um sistema operacional que detectava se os parceiros estavam ou não prevenidos. Não era pelo risco de alguma doença, pois todas as curas possíveis já haviam sido descobertas àquela altura. O problema mesmo era a gravidez. O planeta já não tinha como comportar tanta gente. Sendo assim, em qualquer um que se atrevesse a fazer amor sem o devido cuidado contraceptivo, um choque daqueles seria aplicado, e justamente nas partes mais sensíveis ao embate amoroso. Como a nave de suprimentos aleatórios só passava uma vez por mês, trazendo os tão esperados preservativos, essa ficava sendo a frequência com que um casal ia para a cama. No mais, era dormir. 
          Outro objeto terminantemente proibido pelos detentores do sistema operacional era o livro. Qualquer informação, entretenimento ou manifestação artística deveria brotar exclusivamente da telinha do computador. Segundo os especialistas, que sempre têm justificativas para tudo, os livros eram desnecessários e perfeitamente substituíveis pelos computadores, e com as inúmeras vantagens que estes carregam em relação àqueles. Os recursos virtuais de leitura são infindáveis, com "links" à disposição, imagens tridimensionais, áudio digital e muito mais. O único recurso do usuário para interagir com um livro de papel é a imaginação, coisa mais obsoleta em uma era de tamanha tecnologia. Ademais, livros guardados há muito tempo acumulam ácaros e fungos e ocupam muito espaço. "No lugar de bibliotecas, precisamos de edifícios maiores e mais espaçosos para dar conforto às nossas famílias", gritavam os mais exaltados defensores do sistema. Assim, todos os livros de papel foram condenados. Quem fosse apanhado com um, teria o mesmo destino. Fizeram campanhas milionárias de substituição de livros por alguma máquina. Tudo em prol do progresso.
          Em tempo, uma senhora de noventa anos, posta à varanda, diante do vão em que outrora se erguia um jardim botânico, pressionava contra o peito um pacote antigo. Sentia que a morte a procurava pelo cômodos da casa. A senhora, então, chamou a netinha de cinco anos, que estava por ali aprendendo a lidar com o primeiro "tablet'. 
          - Venha cá, minha menina! Tem algo que eu quero que você conheça...
          - O que é, vovó?
          E a senhora, em delicados movimentos, abriu o pacote que trazia junto ao colo. 
          - O que é isso, vovó?
          - Isso é um livro, meu amor! Um livro de verdade, como era no meu tempo...
          - Como faz pra usar?
          - Basta abrir, passar as páginas e usar a boa e velha imaginação...
          - O que é imaginação, vó?
          E a senhora explicou à netinha sobre imaginação. A garotinha, curiosa como qualquer um de sua idade, pegou o livro, sentindo a textura amadeirada da capa, a delicadeza do papel das páginas, o cheiro desconhecido brotante do passar das folhas. 
         A pequena, esquecendo-se da avó, correu para o quarto, abraçada ao livro. A senhora apenas sorriu, como se previsse algo bom. O livro era As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. E a menina no quarto, redescobrindo o prazer material e imaterial de um livro de verdade, preparava, inconscientemente, uma nova e definitiva revolução.     

4 comentários:

  1. Ótimo texto, Sinval!
    Ele me fez lembrar de um vídeo que havia visto em um blog faz algum tempo: http://www.umpassinhoafrente.com.br/2010/11/23/um-livro-sempre-ser-um-livro/

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  2. Gostei muito do texto...
    Há algum tempo estreou um filme com essa temática. "Substitutos". No qual, as pessoas era substituídas por máquinas, não corriam mais nenhum risco, eram sempre jovens e bonitas... Muito interessante!! Acho triste essa idéia que está sendo divulgada, que tablets substitui livros! Isso é um absurdo...

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  3. Adorei! É ótimo para refletir até onde o progresso é benéfico. Texto Excelente!

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  4. Fantástico! Apesar de por muitas vezes as pessoas passarem tempos em frente ao computador lendo textos de vários gostos, a sensação maravilhosa de folhear um livro não pode ser deixada de lado.

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