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domingo, 4 de setembro de 2011

Crisálida

Porque, ai! o pesadelo hediondo que me assombra
Não dá tréguas e, louco, furioso, ciumento,
Multiplica-se como um cortejo de lobos
E enforca-se com o meu destino que ensanguenta!
Paul Verlaine

         Ele a reencontrou, e era noite. Sucedera durante uma palestra. Mesmo com as luzes apagadas por causa das projeções exibidas na ocasião, soube reconhecê-la: o mesmo olhar antigo de menina acovardada. No entanto, ao afastar-se das dimensões do sentimento, o que impele de imediato o reconhecimento de olhos tão expressivos, sobreveio a lascívia de vê-los cercados de uma carne adensada, maturada por uma vigorosa feminilidade que o desconcentrava. Certamente não era a mesma garotinha assustada de antes. Insurgia de sua jovialidade um vigoroso convite ao prazer, ao reconhecimento de uma chã há muito esquecida. 
        Havia alguém ao lado dela, uma sombra, possivelmente um namorado ou mais. Retomando o idílio inicial, muito por receio da dita figura que a acompanhava, fitou-lhe novamente os olhos, a única prova de que aquela mulher altiva posta à sua frente seria a menina arisca e ensimesmada dos tempos do colégio. Olhos anelados, cingidos de uma negritude admiravelmente antagônica, capazes de remeter às feições dos antigos sarcófagos egípcios ou aos providenciais traços de Carlos Zéfiro. De todas as distâncias, ainda restariam os olhos, embebidos em luxúria e simplicidade, eivados de sagacidade. 
          Não imaginava que, um dia, ainda pelas entrelinhas da adolescência, aquela menina suportasse o peso de tantos desejos. E ali estava ela, mirante no fundo da sala, expugnando os gestos dos que a ladeavam. Parecia não ter mudado seu trato com as pessoas. 
       Tendo sido seu professor, não foram raras as vezes em que ele elogiara sua inteligência. Mas não passava disso. O que mais haveria de se perceber nos trejeitos inábeis daquela figura que, quando na escola, mal caminhava sozinha, mal dizia palavra sem esconder os lábios, como em sinal de arrependimento? Seria esta mulher, de uma voluptuosidade inata a beirar o obsceno, a mesma vestal de braços afilados que costumava esconder-se em livros e pensamentos? 
         Ele pensou nas transformações por que as criaturas passam. Já ela não percebia que a ambição do velho mestre corria pela sala e pousava em seu colo, para sentir-lhe o cheiro e mordiscá-lo com o talento de um recém-nascido. Deve existir em seu corpo alguma mistura de óleos essenciais, de aroma agradável e duradouro, ornamento preciso para uma pele sem precedentes. 
         Como as pessoas mudam, pensou. O que era essa mulher senão um pedaço de insegurança a quem se impingiu membros e cabeça. Seus passos são firmes agora, mas sem perder a delicadeza que sempre lhe dera graça, apesar da clausura a que se submetia. Está agora plena das artes do encantamento. Aprendeu a passar a mão nos cabelos no momento certo, sem gastar sorrisos à toa, desabotoando a blusa até o ponto em que a dominação se faz completa. 
         De sua voz, sabia muito pouco. Do tempo em que conviveram como professor e aluna, raras foram as oportunidades, se é que as houve, de ouvi-la expressar qualquer opinião que fosse. Era de uma passividade que irritava, apesar de ser, como deve sê-lo até hoje, uma menina brilhante. 
         Por pensar nela como mulher, engolia em seco, como se prevaricasse ou esquecesse completamente seu papel de educador. E não somos sobretudo humanos e, por isso mesmo, dispostos ao destino de todo animal que, como nós, possui instintos primários? Ele baixou a cabeça por uns instantes e tentou reconstruir a imagem de outrora, a da garota insossa por quem nutria um simples apreço de mestre, e nada mais. O que ela pensaria dele? Ele deve ter mudado, por certo. Tantos anos sem o menor contato. 
       Deu prosseguimento às falas da palestra, que todos os pensamentos chegaram e partiram num entrecortar de silêncios. Terminado tudo, ainda esboçou reação de procurá-la pelo fundo da sala. Em vão, que já havia saído. Restou a curiosidade de saber como ela o descreveria. E não fora para isso que ali esteve, como para provar que algumas pessoas mudam completamente seu estado e seu caráter? Quando se preparava para ir embora, passou pelo lugar onde ela estava sentada. Nada para trás, além dos olhos.        
 

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