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domingo, 1 de maio de 2011

Onde estão as velhas fotografias?

        


          Quantas pessoas nos observam, de longe, em tocaia, espreita pura do corpo e das palavras? Seja nos confins tecnológicos dos galpões virtuais, seja no mar morto e indolente dos retratos encardidos, sempre existirá quem nos resgate. As fotografias, devo, pois, defendê-las, que nelas habitamos como gostaríamos de ser lembrados, em ritual moderno de embalsamamento, afastados dos cortes longitudinais do tempo, navalha e fio. O único desamparo dos retratos é a distância que se nos impõe no desembarque da memória. De um lado, a figura lúcida e vivaz, do jeito que deveria ser desde a eternidade, senhora de si e de outros que a buscam, ponteiro cruel das saudades, expostas como veias em sangria, que assim é a memória, por vezes sanguessuga, por vezes rede armada entre dois coqueiros; de outro lado, um suicida, uma figura de despertar pena pela covardia de desejar ser aquela fotografia, mas a pequenez de sentimentos trava a eficácia de qualquer remédio, e, mesmo diante de tamanha imobilidade, tudo transporta o ser a um mundo de sem-pernas, sem-braços, sem-juízo, apenas lembrança e coração, um o algoz do outro.                                      
          Quase não tenho fotos, e preciso urgentemente consegui-las, fotos minhas com os outros, fotos outras, quiçá familiares ou casuais, registros humanos das coisas importantes, ou banais, que importa, banal é tudo que pode ser fixado pelo olhar, o resto é por demais insólito para compreendermos; alguém deve ter um retrato, uma lembrança, não no sentido nostálgico, mas na intenção de souvenir mesmo, pois guardamos isso dos momentos, ou ao menos deveríamos fazê-lo, já que cada encontro com o mundo e com os outros é como uma longa viagem, devemos ir preparados para qualquer situação, frio, sede, sustos, imprevistos, mas sobremodo é preciso registrar esses instantâneos, senão passam, viram rio de pedras turvas e escorregadias, carregado de peixes enlouquecidos contra a correnteza, refazendo percursos que não existem mais, só que é da natureza desses peixes tentar.
          Viagens essas são necessárias todos os dias. Alguns vão sempre aos mesmos lugares, deliciam-se com as paisagens de sempre, tão de sempre, que são capazes de desenhá-las milimetricamente com a ponta do indicador, usando as suaves tintas do recomeço; admiro os que percorrem as veredas de sempre sem achá-las monótonas, sem arriscar outros confins, que aquela é a viagem única e derradeira, na medida em que viajar é uma constante busca por um lugar que nos faça não querer mais viajar, fincar pé, enraizar, e ali cevar as criações. Já os aventureiros, esses preferem domar o ambiente, por isso mesmo se alçam sem cansaço do despenhadeiro, que é no meio da queda que estão as melhores lembranças; tais criaturas têm na pele a nódoa cigana, não fincam banca em terra alheia por muito tempo e sabem, desde as horas umbilicais, que o prazer da trilha está no trilhar descalço das recordações acumuladas. Mas também existem os que descobrem, em casual passeio, o lugar perfeito ao ponto de não caber nas caixas fotográficas, um lugar que estivera ali pelos tempos ancestrais, aguardando o olhar certo que o resgatasse do mormaço, que basta um olhar diferente sobre as coisas para que elas se embotem e deixem de ser mera paisagem; esses não são aventureiros, nem proprietários, são apenas visitantes zelosos, que experimentam a sombra de cada árvore, menos uma; que ajudam a desenhar todos os pores-do-sol, menos um; que cuidadosamente encaixam cada estrela em seu respectivo bocal de breu, menos uma; Que inveja desses sábios que sempre deixam alguma coisa por fazer.
        Destarte, o importante é que, a cada lance de riachão, piçarra e neve, o momento fique registrado. Agora mesmo, fixei por uns segundos o porta-retratos, são ali meu pai e meu filho, justo registro dessas viagens inesquecíveis. Alguém, em algum momento, viajou por mim, e onde estão as fotos? Eu, por muitas vezes, me fiz por essas viagens, mas, na maioria, não as levei comigo em retratos; ainda tenho algumas fotografias, mas de imagens retorcidas pelo desgaste dos tempos, e quase não cuido delas, volto a elas somente quando não há mais nada a fazer, tanto que para ver com nitidez tenho que comprimir os olhos de tal monta, que é inevitável escapar uma lágrima.         

2 comentários:

  1. Que belo texto, Sinval! "Não enxergamos as coisas como elas são, mas como nós somos." Um retrato é apenas um esboço de um momento, um esboço inerente a recordações e, até mesmo, lágrimas.

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  2. Fotos são prisões de nosso corpo dentro do espaço-tempo. São nelas que ficam gravadas nossas recordações, sejam boas ou ruins. Texto belíssimo, Sinval!!!

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