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domingo, 8 de maio de 2011

E se...

          E se, em providência, desinventassem a razão, e o olhos, mais obsoleto instrumental de visão, se permitissem enxergar as nódoas essenciais, sangue espalmado nas mãos dos homens; a percepção ampliada, não haveria lugar para desenredos, abismos d'alma, separações.
         E se, algures, um ser carregado de desejo trincasse a vista e materializasse as coisas perdidas no vão dos relógios, sem dor nem piedade, apenas o fizesse por instinto, como saciasse a sede de cada vivente, como espraiasse vida, mesmo sem a fé necessária às grandes realizações, mesmo sem a argamaça de desculpas inúteis que tantos recriam para que a teoria da felicidade inatingível seja, para sempre, resguardada das ousadias dos loucos. 
     E se não nos amparássemos nas muletas das realizações impossíveis, e tudo que um dia se firmou por desencontro passasse a ser o húmus do porvir, sem desacreditar do que passou, mas, sobremaneira, fincando pé no amparo de um texto que está por ser escrito a quatro mãos, paulatinamente, que assim são os romances, embora o que mais apeteça a sede de ontem sejam os contos, as historietas rápidas, que satisfazem justamente por serem concisas e podadas; tão mais fácil crer no encurtamento dos caminhos, que esquecemos que a poesia, a despeito da brevidade, recria espaços, dá ao cérebro motivos de humildade. 
          E se nos permitíssemos, ao menos uma vez, uma noite que fosse de entrega absoluta, sem citações ou banalidades, apenas os corpos inundados de aflição e saudade, descarnando cada centímentro, cada pétala deixada para trás, por maturação, que assim são os sentimentos, qual frutos que amadurecem pelo calor das inúmeras ausências, tão necessárias às certezas, embora houvesse formas menos dolorosas de se descobrir o inevitável. 
       E se pudéssemos voltar no tempo, reconstruir promessas há muito demolidas, desfazer enganos e retribuir de forma mais pulsante as gentilezas postas sob nossos pés; tantos são os que passaram, e o que deixamos para eles? um telefonema vazio e apressado, sem a doçura do retorno, sem o sorriso tatuado na retina, que houve com o tempo em que cada pedaço de sonho jogado no firmamento reinventava o céu?
          E se acontecesse o pior, e a morte, velha intrigueira, sentasse ao nosso lado e nos apontasse o relógio, e tempo não mais houvesse, a não ser para um último alento, a despedida dos familiares; entanto, se fosse dada a oportunidade de escolher alguém sem vínculos genéticos, alguém que, na derradeira hora, seria lembrado de tal maneira, que tudo gritaria seu nome, quem escolheríamos?
       E se não nos escondêssemos feito crianças assustadas com fogos de artifício, e se tivéssemos a coragem de lutar, mesmo em desvantagem, e erguêssemos a bandeira dos que creem na infalibilidade do destino.
         E se não houvesse mais a palavra para amenizar as distâncias.
         E se simplesmente acabasse num ponto final.
         E se reticências teimassem.
         E se findasse.
         Apenas se.

Um comentário:

  1. Que texto encantador! É sempre bom perder-se nas tuas metáforas.

    Abraços.

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