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terça-feira, 17 de maio de 2011

Desabafo linguístico

             
              Não me espanta que os cidadãos comuns, leigos no que tange a estudos linguísticos, recriminem, até de forma ferrenha, o padrão coloquial da língua. Também não me admira que a mídia, sempre disposta a sacos de gatos, exponha em letreiros garrafais que um livro didático adotado pelo MEC ensina a falar "errado". Agora, o que arrepia meus indigentes cabelos de professor de Língua Portuguesa é ver colegas de Letras e Circunstâncias defenderem a golpes de Aurélio que a única maneira de falar corretamente é agir como prega a gramática. 
         É evidente que não devemos menosprezar a variante formal da língua, a normatividade, mas é necessário que a norma padrão seja compreendida como realmente é: uma variante, ou seja, um mecanismo de expressão verbal do qual se deve lançar mão quando a situação comunicativa assim determinar. Imagine a linguagem, pois, como um imenso guarda-roupa, recheado de modelos que, dependendo da situação, poderão ser utilizados ou não. Pense como seria estranho ir à praia de terno e gravata, ou comparecer a um velório com sandálias de borracha, bermudão vermelho-berrante e camiseta regata verde-limão. Para interagirmos com os textos que expressam nossos direitos fundamentais (Constituição, Código Civil, CLT...), é preciso conhecer o padrão formal da língua; além disso, para desvendar as veredas da literatura, é impossível prescindir da norma culta. O problema é que, muitas vezes, confundimos a língua com a gramática. Há quem cometa a gafe de acreditar que é a gramática que rege a linguagem, ao ponto de considerar errada qualquer forma de expressão que se desgarre das prescrições gramaticais. 
          A começar, a escola não ensina a Língua Portuguesa. O que costuma ser ensinado é a linguagem padrão, e, diga-se de passagem, sem fundamentação prática. Aprendemos o que é um substantivo concreto, mas não passamos muito disso, ou seja, não percebemos como esse conhecimento pode contribuir para que nos tornemos leitores eficazes ou redatores eficientes. O ensino da gramática, por vezes, se afasta perigosamente do texto, o que faz com que as aulas de português se tornem um mero apanhado taxonômico, fazendo o aluno engolir, a palo seco, adjuntos, objetos, predicativos e outros despautérios sem sentido. 
            Quem diz "Pega os peixe" parece ser merecedor da fogueira santa da inquisição gramatical. Porém, se observarmos com o mínimo cuidado, mesmo aqueles que têm acesso à educação escolar, e, por tabela, conhecem a norma culta, em uma conversação despojada, cotidiana e afetiva, tendem a pedir licença à concordância e à regência, trazendo para o discurso tudo que é necessário para dar leveza à linguagem. É assim que somos, e é assim que a língua funciona, como um camaleão pronto para trazer para si as cores que o tornarão devidamente adaptado ao ambiente. 
            Por fim, alvíssaras a quem acredita que, num futuro não muito distante, espero, o ensino da Língua Portuguesa passará por uma efetiva reformulação, sem deixar de lado o padrão formal, imprescindível em inúmeras situações, mas prestigiando também as infindáveis "línguas" que nos rodeiam, permitindo, assim, o acesso democrático e plural ao que realmente podemos chamar de linguagem, abrindo mão de (pre)conceitos obsoletos para que, com propriedade, possamos descobrir as possibilidades que esta tão nossa língua nos oferece.      

2 comentários:

  1. Esse texto me fez pensar na qualificação dos profissionais que ainda virão e na reformulação dos planejamentos internos das escolas (sejam públicas ou particulares)que percebemos a grande limitação existente, para isso, no dia em que você se tornar um desses "formadores", dessa vez na universidade, seja o curso que for... eu retorno com o maior prazer como sua aluna, questionadora ou "mesmo que nada"... rsrsrs, mas já está na hora do Sinsvals na UFC, UECE... acho que está perto disso acontecer, no mais, SAU-DA-DE de você.

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  2. É uma pena que as pessoas critiquem algo em que elas têm conhecimento precário. Que não tenham senso crítico para escapar das manipulações da mídia e seus holofotes medíocres. O oráculo das salas de estar joga um crítico na tela pra contrariar as decisões do MEC, e pronto, todos acreditam que o livro tem por objetivo ensinar a falar errado. Se querem julgar, primeiro leiam o livro. O real objetivo não é ensinar a falar errado, mas sim atenuar o preconceito pela variação linguística...ou por acaso a linguagem rebuscada que um advogado utiliza é a única forma de falar corretamente? Está mais do que claro que a Língua Portuguesa está sendo usada como arma de domínio e segregação, e todos estão cegos para isso. No livro, fica bem claro que é importante o aluno ter domínio sobre a norma culta e a linguagem coloquial, mas deve saber usar as duas variantes de acordo com a situação. Essa semana, já escutei comentários de professores dizendo que a adoção do livro é um retrocesso para o país. Retrocesso, ao meu ver, é esse preconceito sócio-linguístico.

    Abraços.

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