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segunda-feira, 7 de março de 2011

Tia Margarida



          Quando nasci, um anjo empoleirado, desleixado por sua própria condição angelical, vaticinou: “Vai, que ensinar é tua sina!”. E o que faz alguém se tornar professor? Por que não investir nos tentadores e venturosos sonhos de menino, em vez de se encarar os tortuosos e desvalorizados caminhos da educação? Tantas são as indagações, que parece não haver quem as responda. Mas há. Sempre há. Um dia, um desses mesmos anjos fez questão de me esclarecer as coisas.
          Pelos idos do velho Liceu do Ceará, uma figura tomou para si a responsabilidade de simplesmente alterar tudo que se pudesse tachar de futuro. Uma mulher, como deveria realmente ser, única na sua forma de dizer as coisas, detentora do poder de me fascinar, mesmo nas ingratas aulas de análise sintática. Que havia nela de reluzente ao ponto de me engalfinhar naqueles robustos olhos de fumo, não sei explicar. Era apenas uma professora de português e eu, que me deixei escravizar no primeiro instante em que a vi, seu mais caloroso admirador. Por tanta afeição, nossa relação estreitou-se naturalmente. Revelava-lhe segredos, mostrava-lhe meus escritos mais íntimos e menos edificantes, e ela, em sua generosidade, tecia comentários nada breves, prolongava sorrisos, como se estivesse nas suas geniais aulas de literatura a analisar os incansáveis clássicos. Foi ela que me apresentou figuras como Clarice Lispector, Machado de Assis, Drummond. Por suas mãos passei a ter com esses camaradas uma relação mais leve, sem as arestas do distanciamento, sem os arranca-rabos pelas entrelinhas. Na verdade, passei a gostar de ler porque gostava dela. E, de alguma forma, eu a lia também. Entanto, era difícil interpretá-la. Às vezes, ela chegava triste, definhada, o vigor no olhar dava lugar a uma melancolia consentida, como se necessitasse disso, como se de toda aquela secura adviesse seu tempo de ir e vir.
          Assim era Tia Margarida, professora de língua portuguesa, mulher de palavras ágeis, arremessadas no vão da classe como cães farejadores a nos perseguir. Nossos encontros duraram três anos, e nisso quase a conheci, quase a fiz chorar quando escrevi um texto para homenageá-la em seu aniversário, quase a esqueci quando ela me apresentou o namorado, quase me deixei levar por seus cabelos ruivos – intocáveis cabelos ruivos margeando os olhos mais solícitos que já vi. Ao fim do terceiro ano, às barbas de um crudelíssimo vestibular, ela me procurou e, com o mesmo ar das iaras e dos sacis dos textos de Lobato, presenteou-me com um panfleto, no qual, providencialmente, havia grifado o curso de Letras. Tia Margarida me sorriu com os olhos. Sinceramente, não sabia o que um profissional de Letras poderia fazer em benefício próprio, mas aquele gesto me intimava. Ela jamais me enganaria, e se estivéssemos à beira do abismo e ela pedisse para pular, eu pularia sem hesitar. Todos me machucariam, menos ela. E assim fiz. Cursei Letras. Depois disso, não mais a vi. Talvez por isso mesmo ninguém mais tenha conseguido fazer por mim o que ela fez. Eu a amava porque sabia que ela amava o mundo que a cercava, e falava de liberdade e de poesia. Tia Margarida me ensinou a sorrir com os olhos. Quem faria isso hoje?
          Tempos depois, passeando com minha família em um shopping, avistei uma mulher antiga, curvada do tempo, amparada por uma senhora. Os mesmos cabelos avermelhados, os olhos de fumo ainda vivazes, as mãos pequenas de menina. Era Tia Margarida. Apressei o passo para alcançá-la. Pus-me à sua frente, segurei-lhe a mão e não consegui dizer palavra. Apenas desabei diante daquela imensidão. Com muito esforço, agradeci por tudo. Se não fosse por ela, eu não seria o que sou hoje. Tia Margarida não mais me reconhecia, estava velha, cansada, distante. Mesmo assim, ela me acariciou o rosto, sorrindo com os olhos um sorriso verde, talvez seu último. Um sorriso que tenho a obrigação de perpetuar.







Um comentário:

  1. Poxa que texto lindo, quem dera ter o dom de proferir palavras tão belas, as pessoas que fazem parte das nossas vidas de forma tão significativa. Esse Sinval é showwwwwwww.

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