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domingo, 16 de janeiro de 2011

Impureza

Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

Hilda Hilst



         Ele sentiu profundo desejo de macerar-lhe o ventre, empalar o resto de pureza que ainda a corrompia, para vê-la copiosa e arrependida de não tê-lo encontrado na hora certa. Era o único que a penetrava com aquela magnitude, o primeiro a roçar-lhe a nuca, num imberbe despudor. Como não se aninhar, se no entrelaçar dos dedos magros já lhe vinham espasmos que definitivamente a afetavam. E tal afetação causava-lhe um incômodo lúdico e constante, que voltava a cada retomada de pele, e o corpo contorcido na poltrona escorregava furioso, querendo respirar, transpirar, experimentar uma vadiagem até então apócrifa. A chuva fina e o vinho desmanchado em conversas sem nexo ritualizavam o corpo. Apertou-lhe o braço com rispidez, sem a flacidez das horas românticas; com os dedos rijos, teceu pela extensão magra de sua presa uma remota crença no que se predestina. O exaspero da pele salientava veias, cheiros, ossos.
            Contudo, com uma força desumana, ela impeliu o caçador, ressentida de não saber como lidar com horas tão felizes, tão despojadas de registros cartoriais. Ao romper o hímen de sua inconsciência, diante de uma libertinagem exangue e fátua, agarrou-se à tepidez que sempre lhe fora providencial para justificar-lhe as desistências. Saiu em direção à cozinha, e ele apenas sentou conformado. Entreolhavam-se curiosos de ver a reação do outro. Levando as mãos ao rosto, ele saltou da poltrona, não sem antes se arrepender, não sem mais uma taça de vinho. Na cozinha, ela tremia; já desistira há muito de ser quem era, menina criada a duras penas para ser o que a mãe ou a irmã nunca foram. Quando criança, participara das celebrações de rua promovidas pela igreja pentecostal que os pais frequentavam. Era do coral, lia os salmos, sempre a preferida dos pastores, que viam nela uma futura missionária; suscitavam um casamento com um dos filhos do pastor-mor. Mas era apenas uma mulher acuada. Na sala, um homem que conhecera há apenas um mês; a insegurança excitava. As mãos se repetiam, procuravam lágrimas que já não existiam.
          Sincopado, numa seriedade lancinante, ele circulou pela sala. Ainda que lhe fosse conveniente, não conseguia mais imaginá-la como uma presa, dessas com as quais se acostumou a conviver. As que passavam e correspondiam aos seus apelos frouxos nunca lhe foram problema; ele apenas derramava sobre elas jorros de cumplicidade que as arrebatavam, devolvendo-lhes o rubor da face. Prestava, pois, um serviço essencial à condição feminina: punha-se diante delas de igual para igual, simulando fragilidades para, no final, vestir a roupa e partir, levando no bolso um número borrado de telefone e a sensação de cumprimento do pátrio dever. Mas ali estava uma mulher diferente, que o fazia pensar em laços mais fortes; filho único do mundo, desde pequeno obrigado a navalhar o tempo, os pulsos, as mulheres - desacreditar parecia uma forma inata de proteção. Mas, dizem, o amor, se o é de fato, costuma vir tarde demais, quando todos já dormem, daí confundi-lo com sonho.
          Esticou o braço para dentro da cozinha, com a garrafa de vinho em punho. Apareceu a meio-rosto e sorriu. Ela sabiamente correspondeu. De mãos dadas, abancaram-se na varanda do apartamento. Um deles mirou as estrelas e, sem maldade, perguntou se o céu seria o mesmo dali a dez anos.



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