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sábado, 18 de dezembro de 2010

3o lugar no XIII Prêmio Ideal Clube - Conto

Compartilho aqui minha absoluta felicidade por ter alcançado o terceiro lugar no XIII Concurso Ideal Clube de Literatura, categoria texto inédito. Levando em conta que foram mais de quatrocentos inscritos, acho que vale a pena investir nas letras. Segue abaixo o conto agraciado.

                                                        O BORDADO PELO AVESSO


           A viagem prosseguia morna e o tempo se esticava. Olhar pela janela dava uma aflição. A paisagem estorricada, a sequidão dos riachos, os arremedos de bichos a farejar qualquer esboço de pasto. O sol das quase três horas derretia-lhe a maquiagem. Faltavam ainda uns bons quilômetros. Retocava os lábios, os lados do rosto, queria parecer bem. Poucas poltronas ocupadas, um silêncio dormente.
          Quinze anos sem dar notícias. Um suspiro, uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu então voltar, rever a casa materna, engolir as mágoas. Empurrava os peitos com força, arrumava-se na poltrona, cruzava as pernas, sacudia os cabelos.
          A vermelhidão das horas riscava o horizonte. A modorra lhe trazia o velho pai. Seu Estênio, de olhar grosso e sobrancelhas grudadas. Veio-lhe o dia em que parou a lida para improvisar um penteado numa espiga de milho. Apanhou para a vida toda. O pai, dizem, morreu de desgosto, quando, no caminho da cacimba, flagrou os primos. De nada adiantou bater, xingar, amarrar no pé da cama. Quando é para se soltar, não tem quem segure. O velho não resistiu. Adoeceu, prostrou-se e dias depois morreu.
          Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, de alguma forma entendia, mesmo calada, consentindo com o olhar distante, perdida no terreiro, tangendo as galinhas. Vivia do marido, que a tirou da família ainda moleca numa partilha de gado. De dia, era tratada como uma criada, com tudo pronto na hora certa. De noite o velho se chegava, fétido dos bichos. As crias não vingavam. Cinco sequer vieram ao mundo. Dois saíram cedo demais e viraram anjos. Olhou pela janela do ônibus e sentiu-se sobrevivente. Agora a mãe, tão próxima, traços delicados, tornava-se um remorso. Tempo demais sem dar notícias. Era tarde.
          Saiu da brenha para as terras do Sul com as roupas do corpo e uma escolha. Prostituiu-se em postos de gasolina, conheceu toda espécie de homens, até se agüentar como manicure em São Paulo. A vaidade era a única virtude que lhe restava. Os cabelos vinham na cintura, as unhas vermelho-sangue, o carmim, as lentes cor-de-mel. Por onde passasse, um assobio distante, uma piadinha. Olhando pela janela, a beleza refletida, o tempo cuspia-lhe a cara.
          - Quem vai descer na Passagem da Onça!
          Tanta exuberância atrapalhava os movimentos. O salto agulha, a insegurança nos passos, o olhar inquiridor dos passantes. Não trazia bagagem, só uma bolsa tiracolo. Apanhou uma moto-táxi, não tinha segurança do caminho.
          - O sítio de D. Felícia, por favor!
          Puxou o vestido, aprumou-se na moto e, aos poucos, começou a reconhecer a trilha. O açude do Traguçu, a cancela da fazenda dos Mota, a velha cacimba, agora desativada.
          - D. Felícia era mulher boa, decente, não merecia tanta solidão...
          - Com certeza!
          A porta do sobradinho era familiar. O chão de cimento queimado, o forno de pedra, os quadros em feitio oval. O quarto, o cheiro. Da janela, o mesmo vazio que a mãe sempre procurava. Sentou-se diante da penteadeira, os frascos vazios de perfumes, os gavetões emperrados, o espelho. O tercinho da mãe. Sempre se apegavam ao tercinho quando o velho Estênio dava de surrar quem estivesse na frente. Retocou a maquiagem, apanhou o terço e saiu.
         O vestido esvoaçava, o salto afundava na piçarra mole. Tinha chovido. Tirou os sapatos, jogou na ribanceira.
          - Pra que lado fica o cemitério, seu moço?
          - Depois do matadouro.
         Que ironia, um cemitério e um matadouro. Caim e Abel. Riu-se. Apertou o passo, o calor era insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu apontou o lugar. Felícia Neves de Araújo.
          Não havia mais nada a fazer. Apertou com força o terço. Esticou o pescoço. Ninguém no cemitério. Pouco a pouco foi se desfazendo. Tirou as unhas postiças, os cílios, limpou o batom. Enfiou a mão no vestido e sacou o enchimento do sutiã. Por fim, puxou a peruca e jogou no tempo.
          Da tiracolo, um revólver. O cano na boca, um disparo. Umas galinhas ciscando tomaram um susto. Continuaram a bicar a terra.



7 comentários:

  1. Parabéns pelo premio alcançado, esse fato não me surpreende, pois seu talento é mostrado em cada aula e cada texto que escreve.Te desejo muito sucesso e parabenizo também os jurados por reconhecerem seu talento.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Meus parabéns professor, o senhor merece. Estou com saudades sim das suas aulas; o que, creio eu, o senhor não pensasse que fosse acontecer com uma aluna do 1º ano do CNSC. Vou sentir muita falta do senhor, das suas brincadeiras e, principalmente, do seu talento.

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  4. Parabéns professor, acredito que esse será um de muitos prêmios que ainda vai ganhar.Me sinto uma pessoa muito sortuda por um dia ter cido sua aluna e por ter aprendido tanto com o senhor.Nunca vou me esquecer de cada aula,de cada puchão de orelha e cada ensinamento.Agora o que me resta é a grande saudade que vai ficar.Bejos

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  5. Parabéns, Sinval! Voc~e tem um belo talento e esse prêmio é prova disso! Não esquece do meu livro, hein? Saudade!

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  6. Estou maravilhada com esse belíssimo texto.
    Parabéns professor.

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