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terça-feira, 9 de novembro de 2010

          Sou filho único. Nasci sob essa condição. Vim ao mundo como que por piedade, depois de outras cinco gestações mal sucedidas. Um sobrevivente, alguém que forçou a entrada e fincou pé na existência, numa espécie de daqui-ninguém-me-tira. Ocorre que, passadas as glórias do nascimento, sobreveio o estigma do ser solitário. Irmãos, nunca os tive; amigos, sempre os de passagem; amores, apenas os efêmeros.
          Na convivência com a solidão, aprendi a ter com ela, apreciá-la, decifrá-la, dormi-la, acordá-la. Todavia a condição de especialista nessa área não me causa amparo, tampouco me dá a segurança necessária para fugir. Na verdade, tornou-se um visgo, como se a própria solidão, ciente de sua veia de maestrina, regesse meus passos, apontando a batuta, ditando o ritmo como devo aplainar a vida. O fato é que a conheço, e conhecê-la é uma forma de violentar-me, quase como quebrar mil espelhos para fugir de mim próprio, quando na verdade o que fiz foi espalhar-me em dezenas de milhares de pequenas imagens lancinantes, tão cortantes e sangrentas quanto meu corpo derramado sobre os estilhaços. Sendo assim, é preciso viver sem a consciência de que a solidão nos é inerente. Se apenas enxergamos, não existem olhos, que passam a existir no momento em que se toma consciência do mecanismo da visão. Mesmo agora, quem se propõe ler este texto fazia-o desprendido de qualquer técnica ocular superior. Ainda que durante a leitura os óculos sejam, vez ou outra, solicitados com a ponta do dedo, o que se tem é a consciência, mínima ainda, de que existem óculos. Mas os olhos estão lá, cumprindo seu papel, embora não os agradeçamos ou os reconheçamos como parte de uma mecânica íntima e latente. A solidão não nos é diferente, já que apenas está lá, aparentemente inerte, mas sempre produtiva. Basta que tomemos tento de sua existência para que de pronto notemos nossa íntima condição de solitários.
          Não pretendo ser pessimista. Fique claro que também não quero ser apologista de campanhas em prol do abraço coletivo. O que me vem é a pura vontade de incompreender. Dizem que não ter como compreender já nos basta como uma forma de compreensão. O que sei é que há um incômodo na solidão, e isso me tortura, conquanto todas as suas faces sejam, de alguma maneira, justas. Imaginemos o solitário poeta, embebido de estrelas, amante da madrugada boêmia, da mulher sem castas, do espório noturno das meretrizes. Seu enleio poético apazigua a solidão, que encolhe as asas por um tempo, como num sopro de vida no proscênio da morte.
          Já a solidão dos pensadores é torpe, pois ignoram o impacto, fingindo, em oposição ao poeta, não sentir dor, tomando tudo por patologia, pânico, abstinência ou coisas do gênero. Uma boa solidão é a da criança, por ser imagética e contemplativa, embora se conceba ali o pior dos retratos: a do menino sem amigos. Porém a criança nunca está completamente sozinha, uma vez que faz da pedra uma fortaleza, da espiga um confidente, da batata e dos palitos um animal de estimação. Não queiramos a solidão dos idosos, que se traveste de abandono, que anula todas as capacidades.
          Espantam-me os que negam a condição de solitários. Exercitam amizades, tornam-se o centro das atenções, impactam, clareiam, perdem-se na primeira curva, renegam-se, mas, quando desfeitos da noite, entregam-se pacificamente à solidão dos ponteiros e das coisas, convencendo-se de todas as inevitabilidades. Assumo que me custou crer na impossibilidade de não haver solidão. O que me sobra é o conforto do não-questionar. Se Ela existe, que seja sem desespero ou pressa. Que desenvolva sua tortura com pingos d´água, macerando-me a carne para que, a duras penas, me reconheça humano.

Um comentário:

  1. Mesmo que alguns ainda olhem para solidao como algo ruim, eles sem perceber precisam dela para esclarecer suas ideias.

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