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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mauro

          Pelo cair da tarde, ouvia-se o assobiado de Mauro, de pescoço estirado no rumo da ladeira do Croatá.
          - Bora!
          Depois de alguns assobios e resmungos, o cachorro saía dos matos, sacolejando os carrapichos. O curumim então principiava a caminhar de volta para o sítio, a enxada pesando no ombro.
          - Bora!
         Mauro era o mais novo de cinco irmãos. Criou-se na lida serrana, tangendo bicho pelas trilhas, caçando preá no mato. Quando se dava fé, lá estava ele trepado na jaqueira mais alta. Com o tempo, tornou-se rijo, calado. Para ganhar uns trocados, limpava os terrenos alheios. Olhava fixamente para o chão toda vez que cruzava com alguém pelas passagens. Melhor lidar com bicho que com gente. Trazia no cós a faquinha amolada, presente de Vô Xicute, que sangrou um lobisomem pelos lados da Passagem da Onça.
          Durante os festejos de Nossa Senhora das Dores, a cidade se enchia de gente de fora. As camionetes subiam e desciam, dando carona aos caminheiros. Os leilões no salão paroquial, a missa campal, os fogos de artifício espraiados no céu. Mauro arregalava o olho a cada pipoco.
          - Vai não, Mauro? A cidade tá uma belezura...
          - Vô não!
         De longe, as luzes da cidade guiavam as vistas. Sentado à beira da rodagem, Mauro admirava, no meio da escuridão, o movimento dos carros, os faróis altos riscando o breu na subida da ladeira. Ao lado, o cachorro, perplexo com todo aquele movimento.
         Diziam que aquele cachorro parecia com Mauro. Arredio, cismado com tudo. Por um pouco não cresceram juntos. E o bicho demorou a ganhar a confiança do menino, que enfim cedeu às insistências do cão. A partir daí, um tornou-se a sombra do outro. Desse um assobio, o cachorro brotava. Desse um latido, Mauro aparecia.
         Mauro já havia decidido voltar para o sítio, quando ouviu uma música alta, estridente. A primeira reação do curumim foi tapar os ouvidos. Era uma camionete grande, barulhenta, iluminada de ponta a ponta. Passou feito bala.
         O menino se esticou até não poder mais para acompanhar o rastro daquele monstro. Foi então que deu por falta do cão. Não deu tempo de assobiar. O bicho estava estirado no meio da rodagem, arfando. Mauro estancou diante do corpo amolecido do cachorro, a piçarra ainda mais avermelhada. Arrastou o bicho até a margem da estrada, e de lá até o sítio. Estava sem jeito. Mauro estirou o cão num tapete de palha de bananeira e entrou.
         Dias depois, pelas horas mais longas, Mauro cavava um terreno próximo do açude Careta. Até que ouviu por ali uma falação solta, animada. Encontrou um jeito de não ser visto e foi reparar o que se passava. A mesma camionete enfeitada. A mesma música estridente. Dois homens, duas mulheres e um menino. Gargalhavam com força.
         O pequeno que fazia parte do grupo afastou-se dos convivas, indo em direção ao mato. Era branco feito gomo de jaca. Mauro chegou mais perto, acocorou-se. Tirou a faca do cós e riscou a terra. Se soubesse as letras, teria dado um nome ao cachorro. Se soubesse, escreveria o nome na piçarra.



















4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Bom que tenha gostado. É um texto simples, mas que trata de algo muito caro a qualquer um de nós, o amor que se sente por um ser querido, ainda que esse ser seja um cão. Além disso, há no final certo desejo de vingança que fica em aberto. Continue lendo e comentando. Os comentários aqui postado são extremamente valiosos para mim.

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  3. Muito lindo, de mexer com o profundo da gente, de nos fazer parar e por um momento pesar o que há de valoroso nessa vida. PARABÉNS!!E mais uma vez, deveria escrever um livro :D

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