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domingo, 25 de abril de 2010

Coração, para que te quero?

         Não sei amar. Talvez pelo fato de ser unigênito. Sequer aprendi a compartilhar amor ou mesmo jamais me permiti recebê-lo. É que para amar é necessário idealizar. Os românticos, pois, que me perdoem, mas nunca fui de maquiar realidades, por mais duras ou indecentes que fossem. Penso não ser possível que um corpo, com todas as extremidades, meniscos, capilares e outras cositas mais, apenas um reles e impreciso corpo, possa, no aproximar de outro corpo, despender reações que não sejam inerentes tão-somente à alquimia do sexo. Tudo que se convencionou chamar amor não passa de uma bem forjada estratégia de dominação, uma espécie de lobotomia emocional que nos torna vazios, vaidosos e venais.
          Desde que inventaram o amor, criou-se uma indústria de sentimentalidades, cercada de poemas com rimas adocicadas, canções com estribilhos fáceis, flores de caule domesticado. Amar aquece a economia. Os namorados, levados por impulsos pueris, presenteiam-se quase que todos os meses, ao menos no primeiro ano de namoro, pois nos demais a coisa naturalmente arrefece – em tempos de mobilidade digital, basta um ano para que todos os mistérios do e-mail e do corpo da pessoa amada sejam desvendados, o que evidentemente faz tudo perder a graça. Se já casados, os mimos tendem a ficar mais caros. Os inesquecíveis ursinhos de pelúcia dão lugar a jóias, jantares em restaurantes requintados ou viagens mirabolantes. Lembrando que, muitas vezes, a balança comercial agradece a uma figura essencial para consolidar o crescimento do PIB de qualquer nação: a outra. O presente da amante é sempre mais pomposo do que o endereçado à esposa. Pelo exposto, resta-nos concluir que o amor é a mais criativa e devastadora invenção dos capitalistas.
           Amar indubitavelmente nos torna egoístas. Exigimos do outro a total e absoluta submissão. Qualquer movimento do outro tem que ser em prol da nossa felicidade. E ai daquele que se rebelar e tentar, democraticamente, reivindicar direitos, atenções, afetos. Os insurgentes logo ficam sujeitos a penas desumanas: horas e horas de desabafos e lágrimas, acompanhadas de um bem servido prato de discussão de relação; metralhadoras de acusações lhes são apontadas, e o sinal para os disparos é o famigerado “Você não gosta mais de mim!”. As milícias que se preparam para combater a autocracia do amor logo são dizimadas, já que é impossível escapar-lhe à ubiquidade. É que em todos os lugares, em qualquer que seja o grupo, existe um espião infiltrado, pronto para dar a vida pela preservação do sistema romântico vigente. Um dia, levantaram a bandeira do amor livre, mas esqueceram que, ao libertá-lo, todos os que dele dependiam findaram escravizados. O amor é Hitler.
            Amar pressupõe ainda um toque de crueldade. Imaginemos um homem, que chamaremos de Sr. X, e uma mulher, que trataremos mui carinhosamente por Sra. Y. Eles se encontram de forma casual, mas pensam ser artimanha do destino. Ambos adoram leitura, não agüentam cebola, comem pizza sem maionese e não bebem coca-cola. Pura coincidência. Entanto, crêem-se nascidos um para o outro. Com o tempo, a proximidade entre eles é tal, que chegam a falar em vidas passadas, já que a única explicação para tanta cumplicidade só pode estar no fato de que, em outras encarnações, tenham sido irmãos, amantes ou pão com manteiga. Claro que isso tudo faz parte de um processo extremamente complexo de dominação. Depois de todas as crendices depositadas, começam os desgastes. Passam a perceber que, se ficarem juntos, a amizade sincera que os une estará comprometida para sempre. Tolice, uma vez que, ao menos na teoria, seria impossível amar sem amizade. Assim, optam por continuarem amigos, mas sem descartar a possibilidade de um lindo relacionamento um dia. Só que, nesse meio tempo, Sra. Y realiza experimentações. O pior é que o pobre Sr. X presencia tudo aquilo, suportando bravamente a dor de ver a suposta amada nos braços de outros. Por fim, depois de idas e vindas, decepções e concepções, chegam à conclusão de que é muito mais cômodo nunca mais se verem. Amor é perda de tempo.
           Por amar demais, muitos cegaram antes do tempo. Outros tantos, à procura da perfeição amorosa, abriram mão de ascensão profissional e mental. Alguns choraram por não concretizar o amor. A maioria chorou depois de concretizá-lo. Nesse caso, chora melhor quem chora primeiro. Para amar, não é necessário coração. Estômago e fígado são muito mais úteis nessa hora.





8 comentários:

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  2. Muito booooooooom, Sinval! Adorei! Me lembrou bastante o Veríssimo! Gostei mesmo!

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  3. Sinval, como sempre surpreende.. Ótimo professor e escritor. Caso não saiba foi determinante na minha decisão final na escolha da letras como curso superior.Muito obrigada por tudo, serei eternamente grata por ter participado tão pouco mas ao mesmo tempo de importancia maior da minha vida. Um abraço!

    * Para relembrar:Fui sua aluna no lourenço filho da osório de Paiva , singularizando, aquela que você encontrou no gigaplay da bezerra andando de motinha! kkkk já faz um tempinho mas duvido que você tenha esquecido isso. Afinal, passou o resto do ano me lembrando desse episódio!
    Por : Izaura Emanuele

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  4. Parabéns,ótimo conto!
    Ótimo professor,ótima pessoa.Lembrou-me de Carlos Drummond de Andrade, que disse "Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo."
    Gosto muito de contos, mas não são todos que merecem ser elogiados e os do senhor merecem elogio. Este conto é mesmo único e muito bem explicado.Parabéns e obrigada por ser um ótimo professor.Disso me orgulho muito!

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  5. Sinval, você é ,de fato, surpreendente e possui um ideal muito firme.Foi muito prazeroso ler esse texto, apesar de não concordar com a sua essência em relação ao amor.Mas, sem dúvida é um belíssimo texto.Parabéns.

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  6. professor, que saudade bateu de suas aulas no l.f voce apontando para nos dizer a resposta. saudades imensa... grande abraço Jessica

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