Amigos leitores que por aqui já passaram

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Sobre todas as infâncias

          
            Que coisa é o tempo. Tantas páginas em branco jogadas de lado, sem sequer um rabisco. Neste exato momento, meu filho cantarola alguma coisa sem nexo, uma musiquinha enfadonha de algum desenho animado japonês. E eu aqui, escrevendo sobre ele. Acabei de convidá-lo para darmos uma volta por aí, ver coisas e pessoas. Quando eu tinha a sua idade, a uma hora dessas estaria me esbaldando pelas praças, correndo feito louco atrás de uma bola. É que não tínhamos computador, internet, celular. Aliás, ninguém tinha. Tudo isso só virou coqueluche muito depois. Computador portátil dentro de casa era invencionismo hollywoodiano, nada mais. Para nós, pelos áureos doze anos, bastava o cheiro fresquinho de liberdade, manhãzinha cedo, domingo.
          Eram demais as presepadas que aprontávamos. Certa vez, por desafio, armaram que eu deveria encarar um terreno baldio que ficava na rua onde morávamos, plenas e longas onze horas da noite, sem lanterna nem vela, ir até os fundos do terreno, onde dormia um pé de mamona, pegar um cacho de mamonas e contar todas as vantagens do mundo. Foram os cinco minutos mais assustadores da minha vida. Outra foi quando deram de subir a velha caixa-d'água da praça do Conjunto Polar. Uma bela escalada, pelos seus quinze metros. Lembro que, no meio da subida, minhas pernas amoleceram. Uma cãibra. Eu era o terceiro da fila de intrépidos alpinistas de praça, mas havia uns quatro depois de mim, que estancaram comigo, ao menos até recuperar os movimentos. Por fim, nada de mais aconteceu e fincamos bandeira no alto da velha caixa-d'água. Descemos duas horas depois, tempo considerado suficiente para tomar coragem. 
         E como brigávamos meus camaradas e eu. Cães e gatos. E que capacidade tínhamos de regenerar nossas amizades. Se discutíamos ou mesmo chegávamos às vias de fato, seguíamos o manual de sobrevivência. Primeiro, chorávamos, porém sem demonstrar dor, pois homem não chora por dor, mas por raiva, fúria ou desejo de vingança. Segundo, mesmo com vontade de matar um ao outro, os brigões não podiam sair cada um para o seu lado: tinham que ficar ali, impávidos, feridos, esperançosos de que o outro tomasse a iniciativa das desculpas. Terceiro, alguém da turma tinha que puxar uma conversa diferente, descontraída, que fizesse esquecer o espisódio burlesco da briga. Por fim, na medida em que todos estavam imbuídos de novas distrações, buscava-se uma outra brincadeira e, voilá, como num passe de mágica, eis os recém-desafetos conversando, rindo, brincando como amigos que nunca deixaram de ser. Essa é a melhor receita de perdão que pode existir. Creio que, quando nos tornamos adultos, uma das primeiras atitudes que tomamos é rasgar essa receita.
         Não tenho mais contato com os amigos da época. Sumiram no tempo ou na memória, se é que há justeza nessa distinção. O pequeno Totonho, negrinho marrento, nosso cocheiro-mor, que todo final de tarde emprestava do irmão carroceiro a nossa carruagem oficial, e seguíamos pelas ruas, senhores de tudo, como nos velhos filmes de capa e espada. O terrível Claudionildo, o louco, um estraga-prazeres, que se vangloriava de bater em todos da rua. Certa vez, organizei um levante contra a sua tirania. Nove moleques contra um. Entanto, na hora h, todos deram no pé e sobrou para mim. Apanhei. Mas sempre acreditei que as verdadeiras mudanças são filhas das grandes mobilizações, mesmo sabendo que as consequências disso podem ser alguns hematomas. O inesquecível Jean, um companheiro sem igual, de uma solidariedade ímpar. Foi com ele que aprendemos que as pessoas que amamos não são eternas. Jean morreu por conta de uma leucemia. Estivemos em seu último aniversário. Ele sorriu muito nesse dia. Sem falar da esperteza de um Augusto e suas ideias descoladas, da ingenuidade de um  Rogério e suas gafes históricas, da boa-pinta de um Gilberto e seus indefectíveis olhos claros. Tantos. 
            O tempo passou. E o pior é que, com ele, todos aqueles amigos também se foram, de uma forma ou de outra. Meu filho está aqui, ao meu lado, perguntando sobre o que estou escrevendo. Não sei o que responder. De certa forma, não escrevo sobre mim, mas sobre tudo que se pode resgatar nesse mundo, sem a obrigação de um mouse ou de um modem. Sinto falta das velhas traquinagens. Não espero, é claro, que meu filho invente algo tão perigoso quanto escalar uma caixa-d'água. Mas, se fizer, que se torne uma lembrança tão boa quanto as que trago comigo hoje.  

2 comentários:

  1. Parabéns Sinval, Grande realidade do que é ser criança,Porque motivo você não se interessa em ser escritor? está em um caminho maravilhoso,Com esforço e dedicação dar pra exercer as duas profissões. Esse texto me fez voltar na infância como aquilo era maravilhoso e agora? O tempo levou TUDO o que era perfeito em minha vida. Sempre sonhei ser de maior ser gente grande mas agora sinto uma saudade tão grande do tempo que tudo era maravilhoso tudo era mágico.

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  2. êÊê...vida simples. Como é bom e a gente não reconhece.

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