Amigos leitores que por aqui já passaram

domingo, 3 de julho de 2011

Sobre desapegos e formaturas


          Por passear de tempos em tempos pelos vãos da palavra escrita, há quem me veja como uma espécie de conselheiro, um arauto da verdade absoluta sempre disposto a maquiar as mais inexcedíveis cicatrizes. Dia desses, tarde em prantos (poesia e caldo de mocotó só fazem mal aos que nunca provaram), um desses leitores me veio com a seguinte indagação: "O que fazer para esquecer um grande amor?". Confesso que fiquei surpreso, pois perguntas dessa monta devem ser dirigidas a especialistas, com turbantes, mantras e uma visão essencialmente psicodélica da vida. Ocorre que me senti na obrigação de responder, e o fiz da maneira mais objetiva possível, sugerindo o providencial exercício do desapego. 
         Precisamos urgentemente de algo que nos distraia do passado, esse comboio de fantasmas que, de quando em vez, nos desorienta com seus tropéis, apitos e fumaças. Existem coisas, pessoas e momentos que merecem ficar exatamente onde estão, estanques na memória, com cheiro de algo novo, com pele de avelã, com relva e arminho. Há instantes na vida que não precisam ser resgatados, não porque não mereçam, mas porque já tiveram sua hora de permanecer e encantar. Enquanto houve, criou-se um vínculo que, com o tempo, não se desfaz, mas permite elos, extensões que nos conectam ao porvir.  Se assim não ocorre, algo certamente está errado. 
        Desapegar-se, contudo,  não é tão difícil quanto se borda.  Recuperemos a imagem da velha e indissolúvel turminha do colégio, tão solenemente resguardada pelo amanhã. Os amigos da escola têm a estranha mania de nos presentear com o futuro. Todos unidos, convictos de que, um dia, esse futuro será redesenhado pelas mesmas cores que hoje tingem suas unhas e cabelos. Caminham pela certeza de que tudo pode ser de graça, sem interrupções, sem o pedágio dos ponteiros. Até que vem a derradeira classe. Ano seguinte, não há mais colégio. E agora? A escola, que tantas vezes nos serviu de antídoto para as veleidades do mundo, que sempre fazia questão de soar uma sirene antirrealidade quando algum aluno rebelde tentava descobrir o que existia além dos enormes portões de ferro; essa mesma escola, maternal e acolhedora, agora joga seus protegidos num campo de batalha sangrento e cruel, para o qual a maioria não se preparou. Um mundo sem notas, sem opções, sem "o cliente tem sempre razão'. Aos poucos, as juras de amizade eterna dão lugar a um turbilhão de receios. Ainda se tenta algum fôlego na indefectível festinha de formatura, mas não tem jeito. Mesmo com o chororô, que todo fim merece uma lágrima; mesmo cantando "Amigos para sempre" sete vezes, que sete é número de sorte; mesmo com todas as fotos adornando as redes sociais, que não há mais diferenças entre o real e o virtual; mesmo com tudo isso, a realidade, descortinada de forma tão abrupta e brutal, cobra seu espaço. E o que se fez próximo torna-se distante. Assim, os amigos de sempre se tornam amigos de vez em quando. Quase amigos. Colegas. Conhecidos. Como é mesmo o nome dele? Acho que conheço aquele cara, mas deixa pra lá. O desapego veio como algo natural, pela necessidade de limpar a gaveta.     
           Não se deve simplesmente apagar o passado. Entanto, cada momento que experimentamos tem seu prazo de validade. Às vezes, por alguma razão, precisamos esvaziar o salão  para dar lugar a novos convidados, mais estimulantes e hipnóticos do que os que ali estavam já sem vontade de dançar e cantar. Que tal dar uma olhada nos velhos guardados para selecionar o que realmente merece habitar nossa lembrança, que muitas vezes se incorpora numa caixa de sapatos abarrotada de porcarias colhidas nestas idas e vindas sem fim? E se encontrar aquela fotografia da turma da escola, a única que não foi digitalizada, faça o que se deve, rasgue-a. Dê uma boa olhada antes, tente lembrar o nome das personagens, recupere seus apelidos, ria das traquinagens, sinta o gosto de cada um. Se conseguir fazer tudo isso, a tal fotografia já não será mais necessária.      

5 comentários:

  1. Ains belíssimo texto!!! Eu tenho essa tal dificuldade de me desapegar (prova disso é meu blog) q sem está se remetendo a situações do passado...mas em relação ao fim do texto qndo fala sobre um amigo, que passa ser colega, conhecido e tal..isso p mim é fruto da sociedade na qual vivemos onde impera a fragilização dos vínculos, onde realmente as amizades eternas se findam nos primeiros meses de distância...enfim é isso..adoro seus textos eterno e querido professor:P rsrs

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  2. Lindooo! Sou saudosista demaisss e estou prestes a me formar. Então...imaginem! :/
    Quero muito poder me lembrar de todas essas pessoas e coisas, porque muitas delas têm sim que habitar pra sempre na minha memória.
    Parabéns. Gostei muito!

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  3. lembrou O Encontro marcado... é triste dar adeus, mas é uma melancolia necessária, certamente. Porque é, pelo para mim, mentira dizer que sempre há espaço para todos em nós...

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  4. triste mas extenuante !
    amei

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  5. Às vezes, precisamos esvaziar o salão não para dar lugar a novos convidados, mas para limpar e reorganizar tudo. Que, assim, fica tudo entregue ao desvelo do porvir. Pra mim, há pessoas que nunca se esquecem, permanecem com o mesmo valor que deixaram na hora da despedida. Embora, seja melhor não despedir-se.

    Sinval, existem alguns contos seus postados em 2009 em que você não escreveu a continuação. Aguardo ansiosa por essas postagens!

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