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segunda-feira, 4 de julho de 2011

@narciso



                Passara a noite toda navegando pela internet, de site em site, como um fantasma, a tela refletida no seu rosto pequeno, de menino pálido, bem cuidado. Entrava e saía, num ritmo frenético, de inúmeras salas de conversas virtuais. Não dormia. A claridade do dia incomodava, então cerrava as venezianas para que a noite se estendesse. Assim seguia, decifrando cada ponto luminoso, dia após dia, iniciando e finalizando conversas, recebendo fotos e mais fotos de possíveis pretendentes, mas nenhuma parecia satisfazê-lo. Ele apenas buscava.
                Foi assim que conheceu @eco. A conversa iniciou-se por acaso, pela coincidência de nicknames, já que ele costumava apresentar-se como @narciso.
                @eco diz: Até que enfim um deus...
                @narciso diz: não sou um deus, mas gostei rs
                @eco diz: Adoro mitologia e vc?
                @narciso diz: amo...
              Não tardou para que a intimidade entre eles se consolidasse. Depois de algumas horas de conversa, tornaram-se amigos de infância. Ele não exigiu uma imagem da recém-amiga, o que normalmente faria se não estivesse tão envolvido. Prolongou de forma proposital o mistério em torno da dona daquelas palavras doces e elogiosas.
                @eco diz: Imagino como seja sua voz, gostosa de ouvir:)
                @narciso diz: fala mais
                @eco diz: imagino seus olhos cheios de brilho...
                @narciso diz: mais...
                Foram dias e dias desse jeito. Ela o idealizava, criava as mais delicadas descrições para o possível namorado, que se mostrava cada vez mais extasiado. Ele a sentia, fechava os olhos à procura da imagem certa, que pudesse traduzir toda aquela beleza.
                @eco diz: Quer me ver? posso mandar uma foto...
                @narciso diz: não, por enquanto não...
          Eles já se tinham como amantes. Perdiam a noção do tempo, afagavam-se com palavras entorpecentes, imaginando como seria um possível encontro, o que vestiriam, qual a reação dos dois quando finalmente tivessem a oportunidade de se mirarem.
    Já passavam dois meses desde a primeira conversa. A tela do computador parecia não comportar tamanha volúpia, derramada em frases cada vez mais pulsantes, impregnadas pelo desejo de se tocarem, se amarem. Finalmente tomaram coragem para marcar um encontro. Nada de fotos. Não havia a menor possibilidade de frustração. Ele sugeriu um cinema. Ela concordou. Dali a dois dias, finalmente se encontrariam.
    Chegado o dia, ele se produziu como nunca. Comprou uma camisa especialmente para a ocasião. Ela não ficou por baixo. Passou horas diante do espelho até se convencer de que estava verdadeiramente pronta para encontrá-lo.
    Ele chegou com meia-hora de antecedência. Sentiu náuseas, teve vontade de vomitar. Olhava para os lados, imaginando que ela surgiria da direita, que lá o sol se punha como nunca. Tentava enxugar o suor das mãos, enfiando-as nos bolsos. Até que ela rebentou, pela esquerda, dispensando a paisagem desenhada por ele.
   O que sucedeu foi inesperado. Ela estancou na frente dele, um sorriso largo deformava-lhe o rosto. A beleza do rapaz encantava, os traços delicados, os cabelos lisos cobrindo-lhe a testa, o rosto limpo, sem marcas, tudo exatamente como ela imaginava. Não disse palavra, esperando a reação do outro.
  Mas ele não encontrou o mesmo. Uma súbita sensação de arrependimento tomou conta do seu corpo, que amoleceu, como se não estivesse ali. Deveria ter exigido a tal foto, afinal. A única coisa que podia fazer era ir embora, voltar para o seu quarto, cerrar as venezianas, tentar novamente. Assim o fez. Sem qualquer desculpa. Apenas se virou e seguiu caminho, sem olhar para trás.
  Ela voltou para casa, desanimada, pressionada por cada segundo que havia perdido naquelas intermináveis conversas. Sentou à beira da cama, sentindo um estranho gosto de sangue. Transtornada, partiu para cima do computador, arrebentando tudo. Prometeu a si mesma jamais acreditar em arrebatamentos virtuais. Ninguém nunca mais soube dar notícias de @eco.
  Já no quarto, ele ligou o computador, a webcam, e foi tomar banho. Lavou-se de cima a baixo, como se livrasse de um fartum intragável. Ainda de toalha, pôs-se diante do monitor. A câmera focalizava-o por inteiro. Parecia hipnotizado pela sua própria imagem digitalizada. Ficou nu, e a beleza exposta na tela o remetia a todas as verdades jamais confirmadas nas palavras alheias. Aproximou-se da tela e abraçou-a com voracidade. Uma descarga elétrica tomou conta de seu corpo. Os pés descalços enrijeciam; a pele, ainda molhada do banho, fumegava do choque. Estirou-se no chão, abraçado à tela, agora sem vida, sem imagem, sem nada que lhe recuperasse o tempo perdido.      

9 comentários:

  1. Parabéns pela originalidade, professor! Muito bom o seu texto!

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  2. Sinval, já estava com saudades dos seus contos! Parabéns por conseguir adaptar com autenticidade uma lenda da mitologia greco-romana tão conhecida em um conto que aborda uma temática atual, que é a virtualidade. A cada texto seu, mas cresce minha admiração por você.

    Abraços.

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  3. Parabéns Sinval

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  4. acredita em "texto perfeito"?...não porque é professor,mas pelas palavras que demostram como perdemos tempo em frente dessa tela que nos impnotiza.espero que eu não chegue a tal loucura de abraçar a tela,principalmente pelada! kkkk bjss professor,vou snetir falata de suas aulas incriveis,espero me formar em professora,e ser como vc! "perfeito!" luh

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  5. desculpe pelo erro das palavras kkk escrevi muito rapido!!! bjsss

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  6. Professor!!! adorei o texto, muito bom viu???
    Parabéns...

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  7. o texto me tocou profundamente...
    É lindo,e não consegui acha-lo triste.

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  8. Isso já aconteceu comigo.
    Preferia um igual a mim do que
    aquela garota, que me fez gritar: ECO!

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